Trump contra todo o resto

Prabhat Patnaik - 19 Xun 2018

O que a conjuntura actual mostra claramente é que é impossível ultrapassar a crise capitalista sem impedir fluxos financeiros globais, o que significa livrar-se da hegemonia da finança globalizada. A estratégia de Trump não pretende afastar esta hegemonia e muito menos os outros países capitalistas estão desejosos de se livrarem da mesma

 O abandono de Donald Trump da cimeira do G-7 sem que tivesse alterado nem uma vírgula do seu proteccionismo indica desunião entre os principais países capitalistas acerca da estratégia para ultrapassar a crise dos mesmos. Trump decidiu que os EUA seguiriam seu próprio caminho, ampliando o défice orçamental, não apenas dando concessões fiscais às corporações, o que teria pouco efeito no estímulo à procura, mas também pelo aumento da despesa governamental o que teria este efeito e, ao mesmo tempo, o de proteger o mercado interno.

 Estas duas fibras da estratégia de Trump juntaram-se. Na realidade, na ausência de proteccionismo, qualquer estímulo orçamental no interior da economia estado-unidense, tal como uma maior despesa governamental deliberada, extravasaria para fora do país com a criação de maior procura por importações de bens de outros países, caso em que os EUA estariam a gerar emprego não dentro de casa mas sim no exterior – e também a incorrer em dívida para com aqueles mesmos países se assim fizesse. Mas um maior défice orçamental combinado com o proteccionismo assegura que sejam criados empregos internos e não se incorra com isso em dívida externa.

 Trump pode permitir-se empreender esta estratégia devido à posição dos EUA no mundo capitalista. Qualquer outro país que prosseguisse uma tal estratégia de défice orçamental ampliado juntamente com proteccionismo testemunharia um fluxo de saída financeiro pois a "confiança do investidor" naquele país seria minada. Mas os EUA estão numa posição diferente: a sua divisa ainda é considerada "tão boa quanto o ouro" apesar de não ser oficialmente tão ordenada (como era sob o Sistema de Bretton Woods). E isto constitui, por uma variedade de razões, a base principal das finanças, de onde, a menos que haja fortes provocações, elas não gostariam de sair. Trump está, assim, a explorar essa posição dos Estados Unidos como o Grande Senhor do mundo capitalista, junto sem dúvida com algum aumento na taxa de juros dos EUA, a fim de pressionar uma estratégia para a revitalização só dos EUA, sem sequer pensar na revitalização do mundo capitalista como um todo.

 O que há de errado com esta estratégia não é a habitual afirmação destituída de fundamento de que "o proteccionismo é mau", de que "o livre comércio é bom", ou de que esta estratégia representa um "nacionalismo" que é reaccionário pois oposto ao "internacionalismo" que é progressista. O que está errado com esta estratégia é que "não funcionaria mesmo para os EUA (embora actualmente possa parecer ter êxito), muito menos para o mundo capitalista como um todo.

 Todo este discurso acerca de "nacionalismo" contra "internacionalismo" é não só analiticamente errado, porque estes termos não podem ser definidos sem referência ao seu conteúdo de classe ("nacionalismo" por exemplo não é uma categoria homogénea e o "nacionalismo" de Ho Chi Minh é bastante diferente do de Hitler); ele é também eticamente não fundamentado: se níveis mais altos de emprego pudessem ser alcançados por toda a parte, juntamente com níveis mais altos de despesas sociais, colocar cada país a seguir uma estratégia "nacionalista", quando comparados a uma situação onde tentam em vão prosseguir uma estratégia "internacionalista", então contestar uma tal estratégia "nacionalista" é claramente indefensável.

 Actualmente a estratégia de Trump, destaca muita gente, parece estar a funcionar nos EUA. A taxa de desemprego está oficialmente baixa e em torno dos 4 por cento. Embora a taxa de participação da força de trabalho continue a estar abaixo da que estava antes da crise de 2008, de modo que, na suposição de uma taxa de participação da força de trabalho inalterada, a taxa de desemprego seria apenas superior a 6 por cento, esta mesma taxa, sugerem alguns, representa um declínio em comparação com a de alguns anos atrás. Ao mesmo tempo, embora Trump tenha utilizado o défice orçamental para agradar os capitalistas através de isenções fiscais, ele não tem, sugere-se, restringido demasiado os gastos sociais. E ainda assim, apesar destas supostas condições de boom, a taxa de inflação é bastante baixa e o dólar continua a estar forte.

 Vamos para argumentar assumir que todas estas afirmações acerca do êxito da estratégia de Trump sejam verdadeiras, embora um momento de reflexão mostre que todas elas não poderiam ser verdadeiras em simultâneo. Por outras palavras, é impossível haver uma coexistência, excepto apenas transitória, das seguintes quatro características: uma baixa taxa de desemprego; um grande défice orçamental; uma política de proteccionismo e uma baixa taxa de inflação. As primeiras três delas provocariam excesso de pressões da procura que fariam subir a taxa de inflação, a qual não mais permaneceria baixa. Mas ainda assim vamos assumir que todas as quatro características fossem verdadeiras.

 Mas todas estas características são apenas os resultados da primeira fase da estratégia Trump. Outros países, aqueles atingidos pelo proteccionismo dos EUA, não ficariam apenas passivos e a aceitar o aumento do desemprego que a estratégia dos EUA de avançar sozinho lhes exportaria. A breve trecho começariam a tomar medidas compensatórias através da ampliação dos seus próprios défices orçamentais, juntamente com o proteccionismo necessário. No caso deles, no entanto, tais medidas implicariam uma fuga das finanças, já que lhes falta o status de Grande Senhor que os EUA desfrutam. Eles teriam, portanto, que aplicar controles sobre os fluxos financeiros, ou seja, “controles de capitais”; ou elevar suas taxas de juros a fim de estimular as finanças a não os abandonarem.

 Controles de capitais, contudo, atacariam as próprias raízes da actual globalização. Vale a pena notar que mesmo Trump, com todas as suas medidas proteccionistas contra as importações de bens e serviços, não aplicou restrições contra os fluxos financeiros livres. Da mesma forma, os outros países capitalistas seriam avessos a restringir fluxos de capitais através das suas fronteiras. Eles portanto recorreriam a altas de taxas de juros para impedir quaisquer saídas financeiras.

 Estas altas nas taxas de juros anulariam numa certa medida seus esforços para expandir para reduzir o aumento do desemprego devido ao proteccionismo dos EUA e também provocariam um aumento correspondente nas taxas de juro dos EUA. O que neste momento parece ser uma "guerra comercial" iniciada por Trump – e está a ser discutida e ridicularizada como tal pelos seus oponentes – em breve assumiria a forma de altas competitivas nas taxas de juro, da qual a presente ascensão nas taxas de juro dos EUA teria sido o primeiro sintoma. E tais altas para todos os países capitalistas tomados em conjunto, incluindo os Estados Unidos, anulariam quaisquer ganhos no emprego que um défice orçamental ampliado e o proteccionismo pudessem ter causado.

 O que a conjuntura actual mostra claramente é que é impossível ultrapassar a crise capitalista sem impedir fluxos financeiros globais, o que significa livrar-se da hegemonia da finança globalizada. A estratégia de Trump não pretende afastar esta hegemonia e muito menos os outros países capitalistas estão desejosos de se livrarem da mesma, eles iriam todos empenhar-se numa luta competitiva de altas de taxas de juro as quais colectivamente não implicaria qualquer melhoria na situação da economia capitalista mundial.

 Só há dois caminhos lógicos possíveis para a economia capitalista mundial poder sair da sua actual crise prolongada. Um é através de um estímulo orçamental coordenado de todos os países avançados, da espécie que Keynes e um grupo de sindicalistas alemães sugeriu durante a Grande Depressão da década de 1930. Isto naturalmente teria a oposição categórica do capital financeiro internacional, o qual se opõe a todo activismo directo do Estado que não passe por seu intermédio. Mas a unidade entre os principais Estados-nação que pudesse, através da mesma, actuar como um Estado mundial substituto, poderia concebivelmente ultrapassar esta oposição. Mas ninguém no G-7 está sequer a falar acerca desta estratégia, o que significa que ela não faz parte da agenda do mundo capitalista. Qualquer tentativa de persegui-la, uma vez que teria de superar a oposição do capital financeiro internacional, o que o capitalismo é incapaz de fazer, teria necessariamente de implicar uma transição para além do capitalismo, ou seja, uma transcendência do capitalismo no próprio processo de superação da sua crise.

 O segundo caminho lógico é países particulares decidirem avançar sozinhos, como Trump está a tentar fazer. Mas para isto ter êxito, teriam de ser postos em prática controles de capitais pois, de outro modo, a prevenção de saídas de capital como uma consequência de tal avanço solitário (que necessariamente exigiria activismo orçamental a que a finança sempre se opõe) pressionaria o país, e seus rivais, para altas de taxas de juro competitivas, as quais subvertem – tanto individualmente para países particulares como colectivamente para o mundo capitalista como um todo – as perspectivas de revitalização económica.

 O êxito aparente de Trump com a economia dos EUA – se é que há algum êxito, o que é duvidoso – representa portanto apenas a primeira etapa nesta luta competitiva. Este êxito está destinado a ser eliminado quando os outros reagirem aos seus movimentos. Uma vez que nem Trump nem os seus rivais estão sequer a pensar em quaisquer restrições aos fluxos de capital, o que minaria a hegemonia do capital financeiro internacional e por isso está descartado, a crise estrutural do capitalismo está fadada a continuar apesar de todas as aparências em contrário.

 

[Artigo tirado do sitio web portugués Resistir.info, do 18 de xuño de 2018]