Três pilares ao serviço do grande capital: A União Bancária

Miguel Viegas - 02 Xun 2016

A partir de um determinado momento, os bancos europeus deixam a sua função de intermediação financeira para segundo plano e passam a entrar na especulação financeira por conta própria, com o único propósito de aumentar os seus lucros e valorizar as suas acções no mercado de capitais

 Em Setembro de 2008 é anunciada a falência do banco Lehman Brothers, instituição maior norte-americana criada em 1850 e com escritórios nas principais praças financeiras mundiais. Era a revelação da crise do «subprime» que rapidamente se espalhou a outras instituições do mundo inteiro.

 Para evitar o colapso, o governo norte-americano tomou o controlo das agências de crédito imobiliário Fannie Mae e Freddie Mac, curiosamente privatizadas em 1968, injectando 200 bilhões de dólares naquela que foi considerada a maior operação de socorro financeiro feita pelo governo norte-americano até então.

 Em Outubro de 2008, a Alemanha, a França, a Áustria, os Países Baixos e a Itália anunciaram pacotes que somavam 1,17 triliões de euros em ajuda aos seus sistemas financeiros.

 É na sequência desta profunda crise económica e financeira que abalou a economia mundial que os chefes de Estado e de governo da União Europeia decidiram em Junho de 2012 criar a «União Bancária». A União Bancária foi assim criada com o fundamento simpático de «controlar» os bancos e de «evitar» que, na próxima crise, sejam os contribuintes europeus a ter que pagar a factura. Nada mais falso, como iremos ver adiante.

 O sistema financeiro é fundamental para a economia. O seu funcionamento deve assentar na confiança dos agentes e em especial dos depositantes que confiam os seus rendimentos e as suas poupanças aos bancos que canalizam estes fundos para investimentos sob a forma de empréstimos. Sucede que esta confiança pode ser minada se o comportamento do sistema financeiro e em particular dos bancos não for pautado por regras elementares de prudência no uso dos recursos que lhes são confiados. E de facto foi isto que aconteceu com a viragem dos anos oitenta, marcados pela ascensão do neoliberalismo plasmado do consenso de Washington.

 A partir deste período, com a financeirização da economia e a especulação financeira, o valor total dos activos bancários cresce a um ritmo duas vezes superior ao da economia real. Ou seja, a partir de um determinado momento, os bancos europeus deixam a sua função de intermediação financeira para segundo plano e passam a entrar na especulação financeira por conta própria, com o único propósito de aumentar os seus lucros e valorizar as suas acções no mercado de capitais. É também neste período que se verificam as privatizações em larga escala criando-se gigantescos grupos financeiros privados, ditos «too big to fail» («grandes demais para falir»). Ou seja, as leis próprias do desenvolvimento capitalista determinam fenómenos de concentração que colocam os governos na «obrigação» de salvar estas empresas, evitando assim a sua falência que arrastaria inevitavelmente grande parte da economia real. É o chamado risco sistémico. Quando rebenta a bolha especulativa em 2007, a crise económica e financeira que se lhe segue irá impor custos astronómicos aos estados numa operação sem precedentes destinada a «salvar» o sistema financeiro. Entre 2008 e 2012, foram gastos pelos estados nacionais 1,5 triliões de euros (são valores da Comissão Europeia), equivalente a cerca de 13 por cento do PIB combinado dos estados membros da UE.

 A União Bancária é constituída por três pilares: o mecanismo único de supervisão, o mecanismo único de resolução e o sistema de garantia dos depósitos. Os dois primeiros encontram-se já em funcionamento ao contrário do terceiro, que conta neste momento com as reticências do governo alemão.

O Sistema de Garantia dos Depósitos

 Não deixa de ser significativo que seja este terceiro pilar, o único que teoricamente defenderia, de forma directa, o interesse dos depositantes, a marcar passo. O sistema de garantia dos depósitos visa criar um esquema mutual à escala europeia destinada a garantir os depósitos até 100 mil euros. Desta forma, e segundo os teóricos da União Bancária, a garantia sai reforçada porque não depende da capacidade solvente do Estado nacional do depositante. Ou seja, retira-se soberania monetária aos estados nacionais, enfraquecendo a sua capacidade de controlar o sistema financeiro, para depois impor um sistema de garantia supranacional com o argumento segundo o qual os estados nacionais não apresentam condições para dar esta segurança aos depositantes. A pergunta que se impõe, designadamente aos muitos partidos ditos de esquerda que anseiam por este pilar da União Bancária, é se não seria mais ajuizado mudar de rumo e voltar a reforçar os bancos centrais nacionais por forma a evitar estarmos mais uma vez dependentes do BCE para garantir os nossos depósitos. Ou alguém acredita que o eventual accionamento desta garantia será concedido sem condições?

 Como dissemos, este sistema representa o pilar que falta à União Bancária. Perante a intransigência alemã que recusa liminarmente contribuir para mais um fundo que possa beneficiar outros países, a Comissão Europeia apresentou uma proposta de constituição de um resseguro de depósitos construído à volta de uma complexa teia de produtos financeiros ainda em discussão. Veremos como evoluem as negociações.

O Mecanismo Único de Supervisão

 A partir de Novembro de 2014, o BCE ficou responsável directo pela supervisão de 130 dos maiores bancos europeus, representando cerca de 85 por cento do sistema bancário europeu. No que diz respeito a Portugal, os quatro maiores bancos portugueses (CGD, BCP, BPI e Novo Banco, ex. BES) ficam sob supervisão directa do BCE. O BCE também publicou uma lista de instituições ditas «menos significativas» onde se encontra o BANIF bem como todas as restantes instituições de crédito nacionais que continuam a ser supervisionados pelas autoridades nacionais competentes em representação do BCE. Contudo, o BCE pode decidir, em qualquer momento, exercer a supervisão directa a fim de assegurar a aplicação consistente de elevados padrões de supervisão.

 Falar de supervisão passa em primeiro lugar por reconhecer o óbvio, ou seja, que a supervisão falhou sucessivamente no passado. Em 2014 e antes de assumir a supervisão única, o BCE promoveu os famosos testes de «stress» nos 130 maiores bancos europeus. Ora, num dos dois testes – a avaliação dos activos (AQR) que começou em Novembro de 2013 e se prolongou até Outubro de 2014 – nada se descobriu relativamente ao BES que faliu em Agosto de 2014. Já no que toca ao BANIF, o banco declarava em Setembro de 2015 que tinha capital e reservas de 675 milhões de euros, permitindo-lhe apresentar um rácio de capital CET1 de 8,5 por cento e um rácio de solvabilidade de 9,5 por cento. Ou seja, os dois rácios de capital do BANIF situavam-se bem acima do mínimo legal exigível pela supervisão europeia. O resultado foi o que está à vista.

 Alimentar esta ideia segundo a qual o sistema financeiro pode ser regulado e supervisionado, evitando assim uma gestão demasiado arriscada, representa um enorme embuste. Os factos estão aí para refutar qualquer possibilidade de controlar seja o que for. Apontámos já vários exemplos. Mas se olharmos para outros fenómenos como os bancos sombras, ou as constantemente renovadas técnicas de contabilidade criativa, onde se confunde deliberadamente dívida e capital, facilmente se compreende que o sistema financeiro dificilmente poderia ser controlado e muitos menos através deste mecanismo único de supervisão que concentra a actividade de supervisão no BCE, afastando-se do terreno que pretende controlar.

 Este mecanismo significa ainda o reforço político ainda maior do BCE que passa a acumular a gestão da política monetária e a supervisão do sistema financeiro. A acumulação destas duas funções levanta questões muito graves do ponto de vista do conflito de interesses e do favorecimento de instituições bancárias, sendo simultaneamente mais uma machadada na propalada «independência» do BCE e no carácter alegadamente neutro e imparcial da política monetária. É que o BCE não fixa apenas as taxas de juro. Está permanentemente no mercado comprando e vendendo activos, actua portanto directamente no mercado financeiro ao mesmo tempo que detém toda a informação resultante do processo de «supervisão». A função do BCE consiste em garantir, através da política monetária, a estabilidade macroeconómica da zona euro. Este novo quadro de funções perverte completamente os estatutos do BCE que passa a estar ao serviço não da economia mas antes ao serviço do sistema financeiro europeu.

 Naturalmente que o propósito do mecanismo único de supervisão é, acima de tudo, obstaculizar ainda mais todo e qualquer controlo público por parte dos estados nacionais sobre os respectivos sistemas financeiros. Ao centralizar-se a supervisão no plano supranacional, os estados perdem mais um importante instrumento político vendo ainda mais limitada a sua soberania num sector vital para qualquer economia. Vejamos por exemplo o caso da CGD. Imaginemos um governo progressista que queira colocar a CGD ao serviço do desenvolvimento do País, financiando as PME e o sector produtivo. Estes empréstimos são de maior risco e irão degradar os rácios de solvabilidade que são calculados de acordo com as regras da supervisão, ao ponto de tornar inviável tal política. Hoje discute-se a limitação a impor aos bancos na sua exposição às dívidas soberanas. Não é por acaso que a Comissão Europeia afirma, em resposta a uma pergunta do PCP, que é indiferente à propriedade pública ou privada da banca, desde que siga as regras da concorrência e da União Bancária.

O Mecanismo Único de Resolução

 O Mecanismo Único de Resolução (MUR) é apresentado com o objectivo de implementar uma gestão mais eficaz da chamada resolução bancária através de um Mecanismo de Único de Resolução (MUR) articulado em torno de um Comité Único de Resolução (CUR) e de um Fundo Único de Resolução (FUR). Assim, se um banco entra em falência, a lógica de «bail out» que prevaleceu até aqui (capitais de externos ao banco falido, normalmente públicos, recapitalizam o banco) é, teoricamente, substituída pelo «bail in» (são os próprios accionistas e credores do banco a pagar os prejuízos), isto claro segundo a propaganda que acompanha o projeto da União Bancária.

 O Fundo Único de Resolução constituído a partir das contribuições dos bancos começa a ser criado em Janeiro de 2016 e pretende-se que esteja plenamente constituído em 2024 com um valor de 55 mil milhões de euros, correspondente a cerca de um por cento dos depósitos cobertos. As contribuições de cada banco são ponderadas pelo risco dos seus activos que são avaliados periodicamente pelo mecanismo de supervisão.

 Em toda a propaganda destinada a vender o pacote da União Bancária, usa-se até à exaustão a ideia de que os contribuintes deixarão de ter de pagar as operações de financiamento do sistema financeiro.

 Mas uma coisa é a propaganda e os discursos, e outra a realidade. Os documentos legislativos (aqueles que realmente contam) são muito menos contundentes. As expressões «os contribuintes não serão novamente chamados a pagar», ou «para que, no futuro, os contribuintes não tenham de pagar a factura dos erros cometidos pelos bancos» são substituídas por formulações bem mais vagas e menos vinculativas de tipo «com custos mínimos para os contribuintes e para a economia real» ou «um regime de resolução eficaz deverá minimizar os custos a suportar pelos contribuintes», etc.

 De acordo com os regulamento, havendo um banco em dificuldade, das duas, uma: ou não comporta risco sistémico e entra em falência de acordo com os procedimentos legais de insolvência, ou apresenta risco sistémico e neste caso, sob decisão do CUR entra em acção o mecanismo único de resolução.

 Este mecanismo permite estabilizar um banco com dificuldades e assegurar a continuidade do seu serviço usando preferencialmente os seus recursos internos. Pode renegociar o seu passivo, converter dívida em capital. As perdas são suportadas em primeiro lugar pelos accionistas e outros credores do banco, com destaque para os detentores de obrigações convertíveis ou subordinadas. Os depósitos superiores a 100 mil euros podem igualmente ser chamados a contribuir, dependendo das legislações nacionais. Em termos concretos, o Fundo Único de Resolução entra em acção a partir do momento em que as perdas dos accionistas e outros credores atinjam o nível mínimo de oito por cento do activo. Contudo, o contributo do fundo de resolução não pode ir para além dos cinco por cento do activo. Finalmente, e tal como faz questão de sublinhar o regulamento, nada impede os governos de ir para além destes limites no que toca à chamada recapitalização dos bancos.

 Contudo, e como facilmente se comprova, este mecanismo não evita o recurso a fundos públicos para pagar os prejuízos da banca e muito menos resolve a questão de fundo das entidades demasiado grandes para falir («too big to fail»). O fundo de resolução representa apenas 3,5 por cento dos fundos públicos aplicados durante a última crise, entre 2008 e 2012. Por outro lado, os próprios limites da aplicação do fundo (os tais 5%) são claramente insuficientes, mesmo considerando as perdas sofridas pelos accionistas. Assim foi no caso do BANIF onde a intervenção do fundo de resolução (alimentado com fundos públicos) representou 17,6 por cento do seu balanço. Para ter uma ideia das escassez deste fundo, compare-se o valor das imparidades registadas só na banca portuguesa, avaliadas em 40 mil milhões, com o valor no fundo de resolução, 55 mil milhões, destinada a cobrir toda a banca da zona euro.

 Este mecanismo de resolução não tem manifestamente os meios necessários para garantir um mínimo de eficácia. Compreendemos que assim seja, porque um fundo mais generoso poderia levar a banca a aumentar o risco na sua actividade. Por isso é que defendemos soluções que ataquem o problema na raiz e não apenas meros paliativos. É que o problema reside na estátua do sistema público, e na existência das instituições demasiados grandes para falir. E a solução passa por medidas de fundo assentes na separação entre banca de retalho e investimento, e acima de tudo pelo controlo público do sistema financeiro.

Conclusão

 Como fica claro com contas simples, a União Bancária, com os seus três pilares, não resolve nenhum dos problemas que estão e estiveram na base da actual crise económica e financeira. No fundamental apresenta dois objectivos centrais: criar um paliativo que não tem outro propósito senão criar a ilusão de que alguma coisa está a ser feita para que tudo permaneça na mesma; e «regular» os gigantescos processos de fusões e aquisições concentrando capital e poder de fogo sobre os processos de falências que inevitavelmente vão acontecer.

 Ou seja, assegura um mecanismo que garante ao grande capital estabilidade, mantendo a canalização de fundos públicos ao serviço dos seus interesses e conveniências. As instituições «demasiado grandes para falir» continuam intocáveis, e, consequentemente os estados, ou seja os trabalhadores e o povo, continuarão a ser chamados a cobrir os prejuízos do grande capital financeiro aquando do rebentamento da próxima bolha especulativa que acontecerá mais tarde ou mais cedo.

 Tal como o PCP defende, a importância do sistema financeiro e a experiência do presente e do passado recente exigem um ruptura com estas políticas e implicam o controlo público da banca e do sistema financeiro. Esta é uma condição essencial para garantir que os recursos financeiros da nossa economia sejam colocados ao serviço do desenvolvimento do País e da melhoria das condições de vida do povo e dos trabalhadores.

 

[Artigo tirado do sitio web ‘Avante’, núm. 2.218, do 2 de xuño de 2016]