Trabalho e organização colectiva

Sandra Monteiro - 13 Feb 2017

O ataque ao mundo do trabalho repercute-se nas questões estritamente laborais, é certo, mas também em toda a sociedade, seja porque nele se monta toda a armadilha das desigualdades, seja porque dele nascem profissionais menos autónomos, menos realizados e menos capazes de efectuar um trabalho de qualidade

Não há nada como a discussão sobre o trabalho para tornar claro que o conflito social e a luta de classes estão bem vivos, mesmo (ou sobretudo) depois de décadas de proclamação neoliberal de um suposto advento da sociedade do consenso e da globalização feliz. O debate sobre questões laborais mostra que não estamos todos no mesmo barco nem remamos todos no mesmo sentido. Há políticas que prejudicam toda a gente, e sabemos que as mais igualitárias e universais são as que constroem sociedades que funcionam melhor para todos. Mas há também interesses divergentes, em conflito, cuja resultante depende muito da correlação de forças entre os mais e os menos poderosos.

 Os Estados e as políticas públicas têm um papel decisivo no reequilíbrio das assimetrias entre estes poderes, mas nos últimos anos usaram-no no sentido contrário, fragilizando mais os mais frágeis. Com o (mau) exemplo a vir do Estado, patrões e concertação social habituaram-se a ter livre trânsito para desregular, flexibilizar, despedir, assediar, impor salários e condições de trabalho sempre piores. Os recentes episódios em que toda a concertação social, com excepção da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), tentou pôr em causa uma medida de elementar dignidade como a subida de um salário mínimo nacional – que, ainda assim, continua a ter um valor tão baixo que envergonha em qualquer comparação europeia –, ou então fazê-la depender de uma subsidiação por via do abaixamento da taxa social única (TSU), são bem ilustrativas de um combate que opõe interesses de classe. Ver o patrão de uma padaria assumir que o seu modelo de negócios assenta, entre outras coisas, em baixos salários e horários de trabalho abusivos, razão por que tem grandes lucros, mostra bem como a exploração laboral, ainda recentemente feita pela calada, foi perdendo a vergonha. À medida que o admirável mundo novo se foi tornando normal, uns perderam filtros morais, é certo; mas outros perderam, ou vão perdendo, ilusões habilmente cimentadas pelos campos político e mediático: a de que estamos no mesmo barco; a de que este barco é temporário; a de que as coisas mudam só com a acção dos outros.

 Esta tomada de consciência, e a acção dela resultante, acontece também por causa da extrema degradação das relações de poder no mundo do trabalho. Mas resulta igualmente da percepção de que os danos causados são demasiado profundos para se resolverem apenas com a devolução de cortes salariais e algum, ainda pouco, investimento público. Exigem mais cidadania porque afectam duradouramente a qualidade do emprego, o existente e o que é criado, e dificultam a capacidade de combate à precariedade e ao desemprego. Porque toda a arquitectura da sociedade de bem-estar, desde a produção e o consumo até à Segurança Social e à saúde, é perturbada a partir do que acontece no trabalho.

 O ataque ao mundo do trabalho repercute-se nas questões estritamente laborais, é certo, mas também em toda a sociedade, seja porque nele se monta toda a armadilha das desigualdades, seja porque dele nascem profissionais menos autónomos, menos realizados e menos capazes de efectuar um trabalho de qualidade, quer no cumprimento de regras de ética e deontologia, quer no produto fabricado ou no serviço prestado. Ainda recentemente, o Congresso dos Jornalistas, que reuniu após 19 anos de interregno, foi muito marcado pela denúncia da degradação da autonomia e das condições laborais em que os jornalistas exercem a sua profissão – um problema social generalizado para o qual, infelizmente, a maior parte da comunicação social contribuiu, cada vez que não fez jornalismo de trabalho ou o fez usando enviesamentos ideológicos e estereótipos de classe, contribuindo para convencer os cidadãos de que não haveria alternativas a essa degradação.

 Por vezes prova-se do próprio veneno. E não é agradável, mas pode ser um momento de aprendizagem. Quando as pessoas voltam a encontrar-se para agirem colectivamente na defesa dos seus direitos, descobrem que acumularam também outros tipos de dificuldades: de mobilização, de informação, de meios (materiais e outros), de definição de princípios e valores comuns, de identificação de pontos de acordo e de discórdia, de estabelecimento de regras de funcionamento e de prioridades estratégicas, etc. Descobrem, ou pelo menos podem descobrir, que a participação democrática, seja ela em associações, movimentos ou sindicatos, é uma forma de os trabalhadores exercitarem, na prática, o tal músculo democrático que sempre definha com a falta de uso.

 Esta perda de músculo é uma dimensão da crise que se preparava há décadas. Fora dos circuitos muito reduzidos em que o debate e a organização colectiva persistiram, e onde tantas vezes se padece dos problemas do fechamento e do isolamento (para já não falar da falta de meios materiais e humanos), depara-se muito generalizadamente com uma perda dramática de hábitos de participação, de estruturação democrática da informação, de organização de um debate plural, de apuramento de divergências e de posições comuns.

 A sociedade tem sido organizada para que não haja tempo para pensar, para discutir, para decidir. Consumir no «pronto-a-pensar» do pensamento único interessa a quem quer manter a maioria numa posição de subalternidade e não a quem aposta na emancipação. Mas estes últimos são apanhados num ciclo vicioso. Fruto da degradação das próprias condições de trabalho, o tempo dedicado à participação colectiva tende a ser visto, não só como arriscado (na relação com o empregador), como em concorrência com os outros usos do tempo de que o trabalhador sente crescentemente falta (na relação com a família, com os amigos, com o lazer, com o ócio). Os próprios interessados em proteger esse tempo de discussão e de organização colectiva foram deixando de ter memória das vantagens de reivindicar esse mesmo tempo. A existência de combates vitoriosos, que se traduzam em melhoria das condições de vida dos cidadãos, é fundamental para incentivar hábitos de participação colectiva e para criar uma memória partilhada – transmissível, comemorada e portanto operante – de como lutar.

 Décadas de derrotas e perdas, apesar do trabalho que continua a ser feito, em condições muito difíceis, pelo movimento sindical e associativo, têm tido um peso avassalador na qualidade da organização colectiva da grande maioria dos trabalhadores. No meio de muitas críticas certeiras, desaprenderam-se hábitos de funcionamento democrático. Exigir regras claras é muitas vezes encarado como uma bizarria de «burocratas» ultrapassados pelo que hoje passa por «modernidade» – a rapidez, o instantâneo, o emocional, o individual (narcísico, até), as certezas do «achismo». É como se a perda de uma cultura de participação e organização democráticas, por imperfeita que ela sempre seja, levasse cada espaço recuperado para a intervenção colectiva a começar sempre do zero, a fazer o seu próprio caminho de reaprendizagem dos mecanismos formais da organização democrática. Um caminho pejado de pedras: conflitos desnecessários, fulanização de posições que deviam ser políticas, enquistamentos e maledicências, atrasos nas respostas necessárias, avanços mal ponderados que geram os problemas seguintes, desilusões e desistências, etc.

 Não está tudo por inventar, mesmo que nunca se tenha inventado nada perfeito. As regras que podem favorecer formas de participação mais eficazes (até na poupança de tempo) e que sejam satisfatórias para todos, vencidos e vencedores, já foram em grande medida pensadas e definidas por décadas de aprendizagem de cultura democrática em organizações habituadas ao conflito e à necessidade de decidir. Não foram as novas tecnologias que as fizeram implodir, foi a falta de encontro e de acção colectiva. Numa altura em Portugal tem a sua economia suspensa de juros da dívida que estão a aumentar desde Outubro de 2016, e que o Banco Central Europeu (BCE) pode desapoiar a seu bel-prazer, não seria sensato aproveitar este momento para se apostar na organização dos trabalhadores?

 

[Artigo tirado da edición portuguesa de Le Monde Diplomatique, febreiro de 2017]