Será que a Europa pode sobreviver a este momento?

Boaventura de Sousa Santos - 28 Feb 2023

Sem a Rússia, a Europa é a metade dela mesma – econômica e culturalmente. A maior ilusão inculcada nos europeus pela guerra de informações do último ano é que a Europa, uma vez amputada da Rússia, será capaz de recobrar a sua integridade com a ajuda dos EUA

 Um novo-velho fantasma paira sobre a Europa – a guerra. O continente mais violento do mundo em termos de número de mortes causadas por guerras durante os últimos 100 anos (para não remontar mais ainda e incluir as mortes sofridas pela Europa durante as guerras religiosas e as mortes infligidas por europeus sobre os povos sujeitos ao colonialismo) se encaminha para uma nova guerra.

 Quase 80 anos após a Segunda Guerra Mundial - o mais violento conflito até agora, que levou à morte entre 70 e 85 milhões de pessoas – a guerra que está a caminho poderá ser até mais mortal. Todos os conflitos prévios, aparentemente, começaram sem uma razão forte e se presumia que durariam por um período curto de tempo. No começo destes conflitos, a maioria da população próspera seguia com as suas vidas normais – fazendo compras e indo ao teatro, lendo jornais, tirando férias e aproveitando para ter conversas à toa sobre política.Sempre que surgia um conflito violento localizado, a crença prevalente era que a mesma seria resolvida localmente. Por exemplo, muito poucas pessoas (incluindo os políticos) pensavam que a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) – que levou à morte mais de 500.000 pessoas – seria o prenúncio de uma guerra mais ampla – a Segunda Guerra Mundial – apesar das condições no campo apontarem para isso. Mesmo sabendo-se que a história não se repete, é legítimo se perguntar se a atual guerra entre a Rússia e a Ucrânia não é o prenúncio de uma nova e muito guerra muito mais ampla.

 Os sinais estão se acumulando de que um perigo maior pode estar no horizonte. Ao nível da opinião pública e do discurso político dominante, a presença deste perigo está vindo à superfície em dois sintomas opostos. Por um lado, as forças políticas conservadoras não só controlam as iniciativas ideológicas, mas também desfrutam de uma recepção privilegiada nas mídias. Elas são inimigas polarizadoras de complexidade e argumentação calma, que usam palavras extremamente agressivas e fazem apelos inflamatórios ao ódio.

 Estas forças políticas conservadoras não se incomodam com os padrões duplos com os quais comentam sobre os conflitos e a morte (por exemplo, entre as mortes resultantes dos conflitos na Ucrânia e na Palestina), nem pela hipocrisia de apelar para valores que elas negam na sua prática (elas expõem a corrupção dos oponentes para ocultar a sua própria).

 Nesta corrente de opinião conservadora, estão cada vez mais entremeadas posições de direita e de extrema direita, e o maior dinamismo (a agressividade tolerada) vem da última. Este expediente visa inculcar a ideia da necessidade de eliminar o inimigo. A eliminação por meio de palavras leva à predisposição da opinião pública no sentido da eliminação pelas vias de fato.

 Apesar de que numa democracia não existam inimigos internos, apenas adversários, a lógica da guerra é insidiosamente transposta para presumir a presença de inimigos internos cujas vozes devem ser silenciadas primeiro. Nos parlamentos, as forças conservadoras dominam a iniciativa política, enquanto que as forças de esquerda, desorientadas ou perdidas em labirintos ideológicos ou cálculos eleitorais incompreensíveis, revertem para uma defesa tão paralisante quanto incompreensível. Como nos anos de 1930, a apologia para o fascismo é feita em nome da democracia; a apologia da guerra é feita em nome da paz.

 Porém, esta atmosfera político-ideológica é sinalizada por um sintoma oposto. Os observadores ou comentaristas mais atentos estão cientes do fantasma que assombra a Europa e, surpreendentemente, eles convergem enquanto expressam as suas preocupações concernentes ao tema. Em tempos recentes, eu me identifiquei com análises de comentaristas os quais eu sempre reconheci como pertencentes a uma família política diferente da minha própria: conservadores, comentaristas da direita moderada. O que nós temos em comum é a distinção que fazemos entre questões de guerra e de paz, e as questões da democracia. Nós podemos divergir sobre as primeiras e convergir sobre as últimas. Todos nós concordamos que apenas o fortalecimento da democracia na Europa pode levar à contenção do conflito entre a Rússia e a Ucrânia e, idealmente, levar à sua solução pacífica. Sem uma vigorosa democracia, a Europa continuará a sonambulizar na direção de uma nova guerra e da sua própria destruição.

 Há tempo para evitar a catástrofe? Eu gostaria de dizer que sim, mas eu não posso. Os sinais são muito preocupantes. Em primeiro lugar, a extrema direita está crescendo globalmente, impulsionada e financiada pelas mesmas partes interessadas que se reúnem em Davos para cuidar dos seus negócios. Nos anos de 1930, eles estavam com muito mais medo do comunismo do que do fascismo; atualmente, eles temem a revolta das maças empobrecidas e propõem a repressão violenta da polícia e das forças militares como a única resposta. A sua voz parlamentar é aquela da extrema direita. A guerra interna e a guerra externa são as duas faces do mesmo monstro, e a indústria de armamentos ganha igualmente de ambas estas guerras.

 Em segundo lugar, a guerra da Ucrânia parece ser mais confinada do que aquilo que é na realidade. O flagelo atual que aflige o continente – no qual, há 80 anos, tantos milhares de inocentes (a maioria deles judeus) morreram, se parece muito como uma autoflagelação. Até os Urais, a Rússia é tão europeia quanto a Ucrânia e, com esta guerra ilegal, além da perda de vidas inocentes, muitas das quais serão indivíduos de fala russa, a Rússia está destruindo as infraestruturas que ela própria construiu sob a antiga União Soviética.

 A história e as identidades étnico-culturais entre a Rússia e a Ucrânia são muito mais interligadas do que com outros países que uma vez ocuparam a Ucrânia e agora a apoiam. Ambas a Ucrânia e a Rússia precisam assegurar uma ênfase maior nos seus processos democráticos para terminar a guerra e garantir a paz.

 A Europa é muito maior do que os olhos de Bruxelas conseguem alcançar. Na sede da Comissão Europeia (ou o quartel-general da OTAN, o que é a mesma coisa), predomina a lógica da paz segundo o Tratado de Versailles de 1919, e não aquela estabelecida pelo Congresso de Viena de 1815. O primeiro humilhou o poder derrotado (a Alemanha) após a Primeira Guerra Mundial, e a humilhação levou a uma nova guerra 20 anos depois; o último honrou a potência derrotada (a França Napoleônica) e garantiu um século de paz na Europa.

 A paz que está sendo proposta hoje é aquela do Tratado de Versailles. Esta presume a derrota total da Rússia, como Adolf Hitler a imaginou quando ele invadiu a União Soviética em 1941. Mesmo presumindo que isto ocorra ao nível da guerra convencional, é fácil predizer que, se a potência perdedora tem armas nucleares, ela não hesitará em usá-las. Haverá um holocausto nuclear. Os neoconservadores estadunidenses já incluem esta eventualidade nos seus cálculos, convencidos, na sua cegueira, que isto ocorrerá a milhares de quilômetros da suas fronteiras. Primeiro os EUA [“America First”] ... e serão os últimos. É bastante possível que eles já estejam pensando em um novo Plano Marshall, desta vez para armazenar o lixo atômico das ruínas da Europa.

 Sem a Rússia, a Europa é a metade dela mesma – econômica e culturalmente. A maior ilusão inculcada nos europeus pela guerra de informações do último ano é que a Europa, uma vez amputada da Rússia, será capaz de recobrar a sua integridade com a ajuda dos EUA – que cuida muito bem dos seus interesses. Se apenas a Europa soubesse como cuidar dos seus próprios interesses.

 

[Artigo tirado do sitio web brasileiro Brasil247, do 17 de febreiro de 2023]