Portugal: Ordenar a floresta contra incêndios

Pedro Bingre do Amaral - 19 Out 2017

Portugal perde directa ou indirectamente em incêndios florestais perto de mil milhões de euros por ano, sendo plausível colocar a hipótese de mais de metade desse valor constituir externalidades directas ou indirectas do abandono a que foi votado mais de um terço do território nacional

Ainda o Verão de 2017 ia a meio do seu calendário e já Portugal sofrera a pior temporada de incêndios florestais desde 2013, ano que por seu turno se notabilizou pela negativa ao ser aquele durante o qual deflagraram os mais vastos incêndios desde que há registos históricos no país. Acresce que estes recordes não são excepcionais apenas no registo histórico português: também no contexto europeu o país se mostra recordista absoluto em termos de percentagem do território consumido pelas chamas. No entanto, a excepcionalidade portuguesa dos anos mais recentes não pode ser explicada apenas pela geografia ecológica, ainda que seja necessário compreendê-la: muitos outros países são atreitos a incêndios florestais, mas poucos são destruídos à mesma escala que Portugal.

 Em várias regiões ecológicas do globo a vegetação dos espaços naturais é recorrentemente flagelada por fogos, espontâneos ou provocados por mão humana. Qualquer que seja a causa da ignição, basta que se verifiquem duas condições para esta se converter num incêndio: a existência de abundante material vegetal seco e de baixo calibre, por um lado; e a ausência prolongada de precipitações, por outro. Sendo assim, é inevitável que ardam mais ou menos regularmente troços da savana africana, da pradaria americana… e dos chaparrais e garrigues mediterrânicos, assim como das plantações florestais que os substituem. Onde houver invernos amenos e húmidos seguidos por verões quentes e secos, como são, por exemplo, os casos do centro de Portugal, da Catalunha e da Provença, sempre haverá fogos na floresta – sendo que, dadas as consequências desses mesmos fogos, nem toda a floresta seja bosque. A floresta é necessariamente, sob clima mediterrânico, composta por um mosaico de matas, matos e prados – sendo que uns tipos de vegetação colocam mais perigo de incêndio do que outros. Dado o clima português, o abandono de qualquer campo agrícola cria oportunidade para num primeiro instante se regenerar uma vegetação arbustiva dita pirófita (isto é, atreita ao fogo, como as estevas, os tojos e as urzes), a qual, pela sua elevada inflamabilidade, aumenta o risco de deflagração e propagação de fogo, sobretudo durante o Estio. Por consequência, deixar de cultivar a terra implica onerar o interesse público com o aumento das externalidades ambientais e económicas inerentes aos incêndios. Para impedi-lo há que assegurar uma transição bem ordenada da agricultura para a floresta, que não passe pelo abandono puro e simples.

 Se se entender por floresta todas as ocupações do solo que não sejam agrícolas ou urbanas, então Portugal é sobretudo um país de floresta: dois terços do território são ocupados seja por matas cultivadas, seja por matos espontâneos, seja por pastagens e prados espontâneos. A etimologia corrobora a ecologia: a palavra «floresta» deriva do latim medieval forestis, adjectivo derivado de foris («fora»), como se aprecia na expressão arcaica silva forestis (literalmente, «mata exterior»). E se no sentido etimológico a floresta reúne todos os espaços silvestres, no moderno sentido dado pelo ordenamento do território também o deveria fazer por motivos de ordem prática. A floresta, para as entidades que desejem ordenar o território, deve ser mais do que o conjunto dos bosques: deverá incluir também o mosaico de paisagem onde se encontram pousios, courelas derrelictas, quintas sem cultivo, pastagens espontâneas, brenhas, urzais, estevais, piornais, rosmaninhais. Mais de metade de Portugal é, nestes termos, floresta carente de ordenamento territorial. Sucede porém que em matérias florestais esta tarefa governativa ainda se encontra no seu primórdio.

 Do ponto de vista da história política portuguesa, o ordenamento do território é uma missão que só a partir de finais do século XX começou a adquirir alguma autonomia face às políticas de obras públicas: até há poucas décadas, os grandes planos sectoriais de infra-estruturação do país e de fomento económico foram na sua generalidade elaborados sem o enquadramento daquilo que hoje se poderia chamar Planos de Ordenamento do Território: cada sector planeava a sua actividade de modo autónomo. Por seu turno, os proprietários dos milhões de prédios imobiliários privados que ocupam a esmagadora maioria do território português podiam dar aos seus imóveis os usos e os fins que entendessem, praticamente sem atender às funções sociais ou ambientais da propriedade, gozando sobre o que é seu de uma plena in re potestas – um poder pleno sobre as coisas suas. Daí que, e talvez por se tratar de um regime jurídico relativamente recente, o Direito do Ordenamento do Território abarque um conjunto de normativas cuja compaginação com as normas mais antigas de Direitos de Propriedade nem sempre se resolve sem atritos. Esta realidade manifesta-se por exemplo sempre que a Administração Pública pretende afectar determinado terreno ao aproveitamento silvícola ou agrícola, mas o seu proprietário opta por mantê-lo inculto: prevalece então a vontade deste último. Esta debilidade das funções sociais da propriedade é ainda agravada por normativas de Direito Fiscal e de Direito Sucessório que contribuem sobremaneira para reforçar alguns traços negativos do cenário das florestas portuguesas. A realidade estatística do país está aí para demonstrá-lo.

A composição do solo rústico português

 O solo rústico em Portugal continental estende-se por 8,4 milhões de hectares, dos quais 3,3 milhões se encontram florestados e 1,8 milhões de hectares ocupados por matos e campos incultos. Dos terrenos florestados, 1,25 milhões de hectares carecem de exploração. Resulta destes números que 24% do território nacional é ocupado por floresta sob exploração, 15% por floresta sem exploração, e 21% matos sem exploração. Dito ainda de outra forma: por enquanto 24% do solo rústico português se encontra afecto à exploração produtiva da floresta, 36% encontra-se assilvestrado, nele tendo sido abandonados os esforços de cultivo.

 Apesar de mais de um terço do território nacional não se encontrar dedicado à produção, ainda assim nos restantes troços produtivos as fileiras que compõem o sector florestal (floresta, madeira e cortiça, mobiliário, papel e pasta) contribuíam em 2010 com 3,7 mil milhões de euros para o Valor Acrescentado Bruto (VAB) da economia portuguesa, totalizando 2,27% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Este sector é também um dos que mais contribuem para diminuir o défice da balança comercial, posto que as suas exportações largamente compensam as importações. Dado o facto de a procura de produtos florestais a nível mundial largamente exceder a oferta, o sector florestal português poderia expandir-se confiando no fácil escoamento dos bens que vende.

 Perante estes números, resulta evidente que um dos grandes desígnios da política sectorial da floresta deveria ser o aumento da superfície dedicada à silvicultura, florestando-se a enorme extensão de terrenos incultos e gerindo produtivamente as florestas ao abandono. Essa ambição, porém, colide com a opção de abandono do cultivo tomada pelos proprietários das terras – decisão essa que se respalda do Direito Real de cada um dar à sua propriedade o fim que entenda. Sucede que, embora o abandono do cultivo do solo rústico goze de um certo respaldo legal, não é todavia uma decisão inconsequente do ponto de vista da segurança de pessoas e de bens. O abandono tem custos, como vimos.

 Entre 2000 e 2015, a média de área rústica ardida foi de 127 mil hectares por ano, dos quais cerca de metade se encontrava recoberta apenas por matos. A maioria das deflagrações tiveram origem em terrenos ao abandono, mas à medida que progrediram puseram em risco explorações agrícolas e silvícolas. Os custos da prevenção e combate a incêndios foram da ordem dos 95 milhões de euros por ano. Os prejuízos directos causados pelos fogos alcançaram os 150 milhões de euros por ano, aos quais acresceram custos de oportunidade de 750 milhões de euros anuais resultantes da perda de matéria-prima para o sector industrial português (com VAB da ordem dos 80%) [1].

 Resulta deste cômputo a conclusão que Portugal perde directa ou indirectamente em incêndios florestais perto de mil milhões de euros por ano, sendo plausível colocar a hipótese de mais de metade desse valor constituir externalidades directas ou indirectas do abandono a que foi votado mais de um terço do território nacional. Esta situação calamitosa é tanto mais surpreendente quanto se constata que segundo uma óptica estritamente silvícola existem condições ecológicas e económicas suficientemente favoráveis não só para se reduzir as áreas ardidas, como também para alargar as extensões cultivadas e aumentar o rendimento económico do sector florestal – desde que o solo derrelicto passe a estar sujeito a uma gestão produtiva. O busílis deste problema é a questão fundiária.

 Devido à lentidão própria da produção lenhosa e ao baixo retorno financeiro por unidade de área, as explorações florestais são por natureza investimentos capital- extensivos tanto em termos de espaço como de tempo: os períodos de retorno do capital podem demorar entre 10 a 100 anos, os rendimentos raras vezes se encontram acima dos 150 euros por hectare por ano. Para serem viáveis, requerem unidades de gestão que possam aceder a vastas extensões de solo (na ordem das centenas ou milhares de hectares), e beneficiar de condições financeiras que permitam aceder a capital a baixas taxas de juro durante largos intervalos de tempo. No momento que vivemos – 2017 – os mercados financeiros oferecem crédito às taxas de juro mais baixas que jamais se verificaram no registo histórico, de modo que o acesso ao capital não é em si mesmo impedimento aos investimentos florestais. A abundância de subsídios e apoios ao sector florestal também favorece iniciativas neste sector, assim haja essa intenção.

 Se do ponto de vista do factor económico capital se vive sob um cenário sobremaneira favorável aos empresários florestais, o mesmo não se pode dizer do factor terra. Aceder, por arrendamento ou por compra, a um mínimo de centenas de hectares necessários à constituição de uma unidade de exploração florestal viável é obstáculo quase insuperável naquelas regiões de Portugal onde a paisagem acusa o abandono generalizado do cultivo da terra – particularmente na região centro.

 Uma parte significativa deste abandono resulta da evolução tecnológica, económica e social do último século. Na maioria dos países desenvolvidos, entre os quais, Portugal se encontra, a industrialização e a terciarização da economia ao longo do século XX permitiu à maioria dos camponeses trocar a agricultura de subsistência nas regiões rurais por empregos mais bem remunerados nos espaços urbanos. A «revolução verde» da agronomia – graças sobretudo aos adubos de síntese desenvolvidos por Fritz Haber (1868-1944) e ao melhoramento vegetal apurado por Norman Borlaug (1914-2009) – permitiu grandes aumentos de produtividade vegetal por unidade de área suficientes para cingir a actividade agrícola aos terrenos mais bem localizados e de cultivo mais eficiente. Estes fenómenos criaram a base para se iniciar, a partir da década de 1970, a chamada «transição florestal»: a contracção da área agricultada e a sua paulatina substituição por floresta ou por matos. Os terrenos marginais para a agronomia moderna – sobretudo os solos esqueléticos ou arenosos com pouca irrigação natural – foram os primeiros a serem abandonados pela agricultura, mas nem sempre foram reaproveitados pela silvicultura.

Desafios da fragmentação da propriedade

 Para a transição florestal propiciar a expansão dos empreendimentos silvícolas seria contudo necessário que cada um destes reunisse sob a mesma gestão, como se disse, centenas ou milhares de hectares dedicados a uma exploração coordenada. Todavia, a propriedade rústica em Portugal encontra-se fragmentada em prédios cuja dimensão individual é manifestamente insuficiente para assegurar a viabilidade de empreendimentos desta natureza. Em 14 dos 18 distritos do continente onde a propriedade é mais fraccionada, a área média dos prédios rústicos é de 0,57 hectares. Nos restantes 4 distritos a área média é de 10,85 hectares. E se o panorama actual é de extrema fragmentação da propriedade, as perspectivas futuras são de agravamento deste fenómeno dado o processo inelutável de falecimento dos proprietários e da sucessão nas suas heranças.

 As normas sucessórias em vigor no que hoje é o território português têm variado muito ao longo da História, e em certa medida demonstram a dificuldade de criar um Direito Sucessório que seja simultaneamente justo para com os herdeiros sem deixar de ser economicamente eficiente do ponto de vista da gestão fundiária. Neste último aspecto, o problema reside em evitar, por um lado, o excessivo fraccionamento da propriedade caso haja partilhas de imóveis, e por outro a extrema concentração da propriedade caso não as haja. Durante o período de ocupação romana, o Direito e os Costumes latinos tendiam a concentrar as heranças no sucessor masculino primogénito, de modo a concentrar a propriedade num só herdeiro e a reduzir a fragmentação das explorações agrícolas, resultando daí a constituição de vastos latifúndios, cuja excessiva extensão gerou ineficiência e injustiça económicas. Com a queda do Império Romano e a entrada em vigor do Direito Visigótico, as normas sucessórias alteraram-se no sentido da partilha equitativa do legado entre todos os herdeiros, sendo ambos os sexos tratados igualmente; das sucessivas partilhas resultou o estado de extrema fragmentação da propriedade em finais da Idade Média, também ela causadora de ineficiência económica. Com a entrada em vigor das Ordenações Filipinas de 1603, instituiu-se a figura jurídica do morgadio, a qual nos dois séculos seguintes inverteu o processo de fragmentação da propriedade, reconcentrando-a nos herdeiros primogénitos – os morgados. Dois séculos depois, os problemas dos latifúndios entretanto gerados motivaram a abolição dos morgadios por Mouzinho da Silveira em 1832. Retomou-se o processo de fragmentação da propriedade por partilhas de heranças até se atingir um tal extremo que, em 1929, o governo português institui o princípio da indivisibilidade das unidades de cultura – superfícies mínimas de um prédio rústico, abaixo das quais não pode haver subsequente fraccionamento da propriedade. Em 2017 as unidades de cultura encontram-se fixadas entre 0,5 e 7,5 hectares, consoante a localização e as condições hidrológicas de cada prédio.

 Desde 1929 até aos nossos dias o instituto das unidades de cultura e as políticas de emparcelamento do solo rústico têm sido os modos pelos quais os sucessivos governos procuram solucionar o problema da excessivo fraccionamento. Fora dos perímetros de rega, porém, o emparcelamento de iniciativa pública tem sido praticamente inexistente, pesem embora as sucessivas normativas legais em seu favor.

O problema das heranças indivisas e das heranças jacentes

 Independentemente destas medidas, no entanto, as normas em vigor de Direito das Sucessões continuam a operar em sentido contrário e não têm permitido conter a fragmentação virtual da propriedade rústica, pois permitem a multiplicação dos putativos titulares mesmo enquanto os prédios se mantêm indivisos por força da «unidade de cultura». O Direito Sucessório português permite que a partilha de uma herança permaneça indefinidamente por realizar. Falecido o primeiro titular de um prédio, as gerações subsequentes podem mantê-la indivisa mesmo enquanto a reprodução vai alargando o número de sucessíveis. Desse modo, é ocorrência habitual um prédio rústico com uma área idêntica à unidade de cultura ser herança indivisa de diversos sucessores, cujo número vai aumentando com a passagem do tempo.

 Em suma: seja pelo fraccionamento efectivo da propriedade, seja pelo fraccionamento virtual em heranças indivisas, o processo inexorável de fragmentação e dispersão da titularidade dos prédios rústicos constitui um sério problema estrutural que incentiva o abandono do cultivo – particularmente nas regiões onde as condições de solo e de clima desaconselham a agricultura e apenas são favoráveis à silvicultura.

 Acresce a este problema a questão das heranças jacentes – patrimónios hereditários para cuja sucessão ainda nenhuns herdeiros se habilitaram. Caso se demonstre judicialmente a inexistência de sucessíveis legítimos, estas heranças são declaradas vagas para o Estado. Somente a actualização do sistema de cadastro da propriedade permitirá aferir a quantidade de prédios nesta situação. Quer um prédio esteja sob a alçada do proprietário vivente, quer esteja sob a condição de herança indivisa gerida por um «cabeça-de-casal», ou quer ainda esteja no estado de herança jacente, assistem sempre ao seu titular efectivo ou putativo a plenitude dos direitos reais de usar, de usufruir, ou de abandonar o imóvel se assim o entender. Sucede que no Direito português a propriedade de bens imóveis é perpétua e não se pode considerar extinta pelo abandono (ao contrário do que sucede com os bens móveis), a menos que entretanto sobrevenha a usucapião por parte de terceiros.

 Resulta desta situação o facto de a sinergia entre os direitos sucessórios e os direitos reais estipulados pela legislação portuguesa não apenas favorecer a fragmentação da propriedade imobiliária ao ponto de inviabilizar o seu aproveitamento económico, como ainda proteger o abandono que decorre daquela inviabilização. Mais de um terço do território enferma desta patologia.

 Porém, tal como foi dito acima, a decisão de abandonar um prédio rústico afecta não apenas o património do respectivo titular, mas também o dos vizinhos. A proximidade entre prédios pode conduzir ao choque entre os interesses dos respectivos proprietários, na medida em que o estado de incultura de um terreno agrava o risco de nele deflagrarem pragas, doenças e incêndios susceptíveis de lesar os bens situados nos imóveis adjacentes de propriedade alheia. Por este motivo, a potestade de abandonar tem limites subjectivos: assiste a cada titular o direito negativo de recusar ao vizinho opções de gestão do património susceptíveis de impedir o aproveitamento efectivo do seu. O exercício ou não deste direito negativo poderá ser causa maior de conflitos entre proprietários de imóveis contíguos. Uma solução de natureza fiscal para este imbróglio poderia ser rever a tributação do património de modo a desincentivar o abandono, onerando sobre os proprietários os encargos da prevenção e combate a incêndios. Tal ainda está longe de ser a prática.

 Em 2016, os 8,4 milhões de hectares de solos rústicos encontrados no nosso país estavam repartidos em 11,6 milhões de prédios rústicos. Os titulares destas propriedades eram 2,9 milhões e contribuíram 7,6 milhões para o erário sob a forma de imposto sobre o imobiliário (IMI). Ou seja, os contributos foram em média de 0,66 euros por prédio, ou 0,91 euros por hectare, ou 2,52 euros por proprietário. Se se atender ao facto de 3 milhões de prédios rústicos estarem isentos de tributação, então a média ponderada entre os efectivamente tributados é de 0,88 euros por prédio. No mesmo ano de 2016 a despesa pública em prevenção e combate a incêndios florestais alçou-se a 95,2 milhões de euros, ou seja 11,3 euros por hectare. Se aos donos dos imóveis rústicos tivesse competido sustentar esta despesa, o seu contributo anual teria sido de 31,9 euros por proprietário.

 Perante o panorama traçado acima importaria questionar-se se é possível fazer evoluir o quadro legal do ordenamento do território propriamente dito, de modo a articulá-lo com outras normativas que até agora lhe são alheias – designadamente em matérias de Direito Fiscal, Direito Sucessório e Direitos Reais.

 Desde logo os Direitos Reais constituem o mais sólido núcleo de normativas com as quais o Ordenamento do Território tem de lidar, sendo além disso assunto de extrema delicadeza política, social e mesmo psicológica: sobre a propriedade da terra recaem enormes e por vezes contraditórias expectativas. Desde as reformas legislativas de 1834 até à Constituição da República Portuguesa hoje em vigor, o Direito nacional defende como um princípio inviolável a propriedade livre e individual, coincidente com a fórmula romana «plena in re potestas» – de potestade plena do proprietário sobre coisa sua, como já foi referido acima. Sendo assim, torna-se difícil fazer aceitar a este último normativas supervenientes que em nome do interesse de terceiros imponham uma redução nos seus direitos de usar e usufruir o que é seu. E no entanto, o direito de votar um terreno ao abandono colide tanto com os interesses particulares dos vizinhos (que assim vêem aumentar o risco de perder os seus bens por via de incêndios e pragas), como com o interesse público que suporta as externalidades daí resultantes (custos de oportunidade económica, custos de prevenção e combate a incêndios, etc.).

Territórios ao abandono e unidades de gestão

 Para reduzir o perigo de incêndio é imperioso que cada troço do território português hoje ao abandono passe a ser integrado numa unidade de gestão que o explore de tal modo que se reduza a acumulação de combustíveis. A produção de madeira em alto-fuste, de cortiça, de castanhas ou nozes; a silvopastorícia, o montado; a extracção de biocombustíveis arbustivos – qualquer um destes usos, desde que gerido sobre largas extensões territoriais, contribui simultaneamente para a segurança pública e para a economia nacional. E para este objectivo se concretizar é necessário que os proprietários não exerçam o direito ao abandono, mas antes se tornem gestores proactivos dos seus prédios, ou se associem a quem o faça, ou os arrendem a quem a isso esteja disposto, ou os vendam a quem queira investir no empreendedorismo florestal.

 O Direito das Sucessões também poderia ser melhorado de modo a servir os objectivos do ordenamento do território – e para isso deveriam ser agilizados os processos de habilitação de herdeiros e de resolução de partilhas. Falta à Lei portuguesa estipular um limite de tempo após o qual uma herança jacente seja declarada vaga em favor do Estado, sendo o processo de reconhecimento judicial da inexistência de herdeiros iniciado automaticamente um certo número de anos após o falecimento do de cuius. Seria também de todo desejável pôr cobro ao crescente fraccionamento virtual das heranças indivisas de prédios com áreas equivalentes às unidades de cultura, exigindo a conclusão das partilhas entregando o imóvel ou a um sucessor singular (havendo lugar a contrapartidas monetárias aos demais herdeiros), ou a uma pessoa colectiva legalmente constituída como empresa ou associação.

 Finalmente a fiscalidade poderia ser chamada a articular-se com a missão do Ordenamento do Território, transcendendo a sua função meramente reditícia e ganhando também funções de disciplinadora dos usos do solo. De facto, até à data a tributação do património realizada tem tido essencialmente por meta a colecta de receitas em favor do erário. Este tributo poderia, no entanto, ser convertido num dos mais eficazes instrumentos de ordenamento do território se o Valor Patrimonial Tributário de cada prédio rústico fosse determinado em função do zonamento dos usos potenciais nele permitidos segundo os planos de ordenamento do território – ou seja, se se introduzisse uma verdadeira Land Value Tax tal como teorizada pelo economista norte-americano Henry George (1839-1897). Em sentido contrário aponta o regime fiscal contemporâneo, considerando que a avaliação do valor patrimonial tributário dos prédios rústicos deve ser feita apenas em função do rendimento em abstracto, não especificando se se trata de potencial ou actual. Na realidade, esta formulação ambígua leva a que o solo em estado de abandono (e portanto sem rendimentos actuais) possa ser desonerado de imposto, ao passo que o solo em exploração agro-florestal pode ver a sua tributação agravada.

 Em suma: na batalha contra os grandes incêndios florestais em Portugal fazem falta alguns instrumentos de Economia Política e de Direito sem os quais a Silvicultura e a Protecção Civil sucumbirão por falta de aliados. Haverá sempre incêndios nos ecossistemas mediterrânicos, mas sem um ordenamento do território solidamente apoiado pela fiscalidade, por Direitos Reais equilibrados face à função social da propriedade, e um Direito Sucessório racional, os pequenos fogos tenderão alastrar e a tornar-se escusadas tragédias.

 

Notas

[1] Valores extraídos do Manifesto pela Floresta contra a Crise (II), subscrito em 2012 por, entre outros, representantes da Associação para a Competitividade da Fileira Florestal e da Forestis – Associação Florestal de Portugal.

 

 

[Artigo tirado do sitio web portugués de Le Monde Diplomatique, do 18 de outubro de 2017]