Haiti: Uma revolta popular anti-imperialista

Carlos Aznárez - 17 Feb 2016

Durante as últimas semanas o Haiti se foi convertendo num cenário claramente pré-revolucionário, produzindo-se nestes últimos dias uma esmagadora revolta popular.

 Puerto Príncipe e outras cidades do Haiti são atualmente cenário da maior revolta popular da martirizada nação haitiana nas últimas décadas. Dezenas de milhares de manifestantes lançaram-se na rua para demonstrar a sua repulsa pelo atual governo presidido por Michell Martelly, que decidiu contra o que pensa a grande maioria manter a data de domingo 24 para a realização de uma “mascarada eleitoral”, tal como a designam os partidos da oposição.

 Apesar disso, começou a elevar-se uma gritaria ensurdecedora desde os recantos mais pobres da cidade que inclusivamente invadiu com inusitada violência as ruas residenciais de Petion-Ville: é o povo em toda a plenitude da sua capacidade de resistência fazendo honra às origens independentistas e anti-esclavagistas de 1804, que se pôs de pé para criar uma ofensiva anti-imperialista e escrever nas páginas da sua própria história um descomunal “Basta!”.

• Basta de utilizar o território haitiano como laboratório de invasões por parte dos Estados Unidos e dos seus aliados.

• Basta de tropas invasoras da Minustah (Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti – N.T.), que, muito ao contrário do que dizem os seus promotores quando falam de “ajudar o povo haitiano e exercer uma missão humanitária”, tudo o que deixou pela sua ação foi repressão, ocupação, violação de crianças por parte de soldados treinados para matar e transmissão da cólera, cuja epidemia causou dezenas de milhares de mortos.

• Basta de cumplicidade latino-americana com as tropas invasoras das Nações Unidas.

• Basta de engano e de hipocrisia internacional provenientes das vergonhosas “missões de ajuda”, encabeçadas pelo genocida norte-americano Bill Clinton, que só procuram apertar ainda mais os laços de dependência e dominação do povo haitiano.

 É por isso que durante as últimas semanas o Haiti se foi convertendo num cenário claramente pré-revolucionário, produzindo-se nestes últimos dias uma esmagadora revolta popular. Frente à teimosia criminosa de Martelly e seus sequazes de quererem que o ato eleitoral se realize de qualquer maneira e frente à tíbia resposta epistolar dos partidos da oposição (salvo honrosas exceções), milhares de jovens decidiram tomar o futuro nas suas mãos e começaram a percorrer as ruas em grandes vagas, primeiro pacificamente, levando palavras de ordem contra o Conselho Eleitoral e pedindo a renúncia do Presidente. Frente à brutal repressão policial e das tropas da Minustah que foram mobilizadas, começaram a exercer em resposta a lógica e necessária violência popular. Essa mesmo, que quando surge em circunstâncias-limite (e esta, se o era) provoca sempre reações de repúdio nos setores oligárquicos e pequeno-burgueses (incluindo nalguns setores de certa esquerda tola) que não conseguem compreender que a paciência dos povos tem limites muito claros.

 No Haiti de hoje, tudo o que o povo fizer em sua autodefesa frente a políticos venais e invasores fardados está mais que justificado.

 Os exemplos destas últimas horas são contundentes: estudantes, trabalhadores e lutadores de todas as gerações atravessaram a rua da avenida La Saline e irromperam no bairro Bel-Air e na estrada Delmas aos gritos de “Martelly tem que sair. Nós somos o governo”. Na praça Saint-Pierre, a polícia e não poucos capacetes azuis da Minustah atacaram a multidão com gases, balas de borracha e jactos de líquido irritante da vista e da pele, mas os jovens não cederam e começaram a levantar barricadas e a deitar fogo a pneus nos cortes de ruas. As bombas molotov, as pedras e outros objetos semelhantes eram a resposta à violência dos fardados que converteram em poucos minutos o ambiente irrespirável dos gases num verdadeiro pandemónio. Carros incendiados, sedes do partido oficialista destruídas e o passa-palavra avisando que “ninguém abandona as ruas, somos o poder popular”.

 Quando uma quantidade de manifestantes invadiu com os seus cantos e protestos o bastião “martellista” de Petion-Ville, os comerciantes fecharam as portas e alguns energúmenos ligados ao partido de Martelly bateram num jovem, rapidamente defendido por outros, enquanto a fúria popular se libertou com toda a força contra veículos e alguns estabelecimentos oficiais.

 Foi nesse preciso momento que una notícia percorreu cada uma das manifestações como um rastilho de pólvora: “o governo decidiu realizar os comícios dia 24 por razões de segurança”. A explosão de alegria ecoou em todo o território e redobraram-se as palavras de ordem exigindo o abandono do cargo por Martelly. “Enquanto não renunciar, ninguém vai para casa”, gritou de repente no tejadilho de um carro um dos lutadores haitianos. E milhares de braços levantaram-se fazendo o V da vitória.

 Assim está o panorama por esta altura, apesar do alheamento e da tergiversação mediáticas, num país a que a América Latina e as Caraíbas tanto devem. Entre outras coisas: os ventos libertários de 1804 que iluminaram as lutas de independência posteriores. Agora, o que faz falta é que cada um dos países onde os maus governos impulsionaram a invasão do Haiti com tropas latino-americanas se faça todo o possível para que essa vergonha acabe de vez. E que, em vez disso, as organizações populares do continente aumentem a sua solidariedade concreta com quem nas ruas está lutando por todos os meios ao seu alcance pela independência definitiva.

 

[Artigo tirado do sitio web brasileiro ‘ODiario.info’, do 17 de febreiro de 2016]