Do Estado oligárquico ao Estado democrático

Vaz de Carvalho - 09 Mai 2016

Ao serviço das transnacionais foi instituído e está a ser aprofundado um poder totalitário, antidemocrático, sob o álibi da globalização e suas mirificas vantagens que a realidade desmente totalmente. O domínio das transnacionais é exercido por instituições internacionais que se sobrepõem ao poder democrático (FMI, BCE, CE, CE, etc.). Os ditos tratados de comércio livre como o TTIP ou o TTP pretendem ser a derradeira etapa desta imposição

1 – OLIGARQUIA E OLIGARCAS

 Oligarquia significa "governo de poucos", contudo o termo é aplicado à circunstância do poder político ser dominado por grupos que detêm o poder económico, controlando as políticas económicas, sociais e culturais nas chamadas "economias de mercado", em benefício dos seus exclusivos interesses, em detrimento das necessidades e interesses coletivos.

 Oligarquia corresponde ao que no marxismo se designa por "burguesia", isto é, "a classe dos capitalistas modernos que transformou a pequena oficina do mestre na grande fábrica do capitalista industrial (…) tornando os operários escravos da classe burguesa" ("Manifesto").

 Sociedades mercantis da antiguidade foram oligarquias onde se desenrolaram intensas lutas de classe. Platão nos seus "Diálogos", caracteriza o governo oligárquico: "Subjugam-se os cidadãos, os homens livres são tratados como servidores e perdem seus direitos". É "um governo cheio de vícios inumeráveis, onde o rico manda e o pobre não participa no poder (…) Quanto mais a riqueza e os ricos são honrados menos estima se tem pela virtude e pelos virtuosos, por consequência o governo não é entregue aos mais capazes e virtuosos, mas aos ricos ou aos que melhor defendam os seus interesses. (…) "Resta ainda uma liberdade: a de uns serem excessivamente ricos e outros serem excessivamente pobres e indigentes." É um exemplar retrato das sociedades neoliberais.

 Para proteger os seus interesses, os oligarcas não hesitam em buscar apoio externo. Sob o seu controlo são feitas sucessivas concessões ao estrangeiro. Os países caiem na completa dependência, não podem seguir políticas autónomas, pouco lhes resta de soberania, com governantes e outros representantes do Estado – como o governador do Banco de Portugal, às ordens do BCE - pouco mais que fantoches, em que a sua principal função é proteger os interesses da oligarquia e garantir a manipulação ideológica, a exploração e a repressão sobre as camadas trabalhadoras.

2 – O ESTADO OLIGÁRQUICO

 Não deveria ser necessário descrever o Estado oligárquico, como membros da UE é nele que vivemos. A questão é que entre a realidade e a percepção da mesma existe a consciência e é neste nível que a oligarquia age condicionando-a pelas mais diversas formas de alienação.

 A UE fornece todos os pretextos para serem negados compromissos eleitorais. Governos que pretendam honrar os seus compromissos com os cidadãos, são atacados, como atualmente se torna patente nas pressões sobre o governo do PS apoiado por partidos à sua esquerda.

 Permanece um certo formalismo democrático, inoperacional no que é essencial, devido aos tratados e ao poder de instituições à margem do controlo democrático como o BCE e mesmo à margem dos tratados como o Eurogrupo.

 A economia foi reduzida aos interesses privados com o álibi de uma concorrência "livre e não falseada", na realidade distorcida por oligopólios cartelizados, com entidades reguladoras e empresas de auditoria ao seu serviço. Uma pseudoconcorrência económica e socialmente destrutiva, em que os "mercados" passam a ser mais importantes que os interesses nacionais, a democracia, as próprias pessoas e seus direitos.

 Enredado num acumular de contradições o poder é mantido por uma intensa lavagem ao cérebro dos cidadãos, perversão das liberdades sindicais, [1] repressão e pelo que se designa a "porta giratória" entre funções públicas e altas funções em grandes empresas privadas

3 – DESIGUALDADES

 As desigualdades não são uma questão de ética nem se resolvem com apelos à boa vontade como parece pretender Thomas Picketty. As crescentes desigualdades são uma condição do poder da oligarquia e da concorrência entre oligarcas.

 Cerca de 27% da população mundial vive em brutal pobreza. As desigualdades repercutem-se pelo mundo da globalização capitalista: as 62 famílias mais ricas possuem tanto como metade da população mundial, 3,6 mil milhões de pessoas. Entre 2010 e 2014 a "riqueza" da metade mais pobre da população global caiu 41% enquanto para as 62 famílias mais ricas aumentou 500 mil milhões de dólares. Este alarmante aumento da miséria social é provocado pelas políticas oligárquicas. [2]

 As crises têm servido para a oligarquia eliminar direitos de cidadania (como os laborais) e aumentar o seu enriquecimento. Entre 2008 e 2013 nos EUA os 7% mais ricos aumentaram a sua riqueza em 28%, os 93% restantes perderam 4%. [3]

 Desde os anos 80 que os aumentos de produtividade são absorvidos na quase totalidade pelo capital, enquanto repetem que cortar impostos aos mais ricos e direitos aos mais pobres estimula a criação de emprego. Propagandeava-se que "tentar manter o emprego é fatal para o crescimento, e o bem-estar social", mas apenas os seus lucros e o desemprego aumentaram.

 Administradores e executivos das grandes empresas acumulam fortunas em remunerações e prémios, praticamente sem pagar impostos, enquanto impõem acrescidas condições de exploração aos trabalhadores. Veja-se a pressão da direita e das instituições da "solidária" UE (com quem?!) contra o aumento do salário mínimo em Portugal.

 Em Portugal foram detetados em 2009, 240 contribuintes com rendimento anual de mais de 5 milhões de euros (e um património superior a 25 M€). Tributando à taxa aplicável deveriam ter pago algo como 636 M€… mas pagaram 50 M€. Eis a justiça fiscal da política de direita! Um estudo internacional identificava em Portugal 930 (pelo menos) contribuintes deste tipo. Ou seja, para um rendimento médio de 7M€ haveria uma receita fiscal de cerca de 3 500 M€. Valor equivalente ao saque fiscal do governo PSD-CDS (revelado em comissão parlamentar).

 No país da "liberdade e igualdade" esta esvai-se: 10% das famílias francesas detêm metade da riqueza do país; 80 mil milhões de euros de fraudes escapam aos impostos, os benefícios fiscais aos oligarcas atingem dezenas de milhares de milhões alimentando a especulação. Quarenta cidadãos dos EUA possuem tanto como metade da população do país. A sua riqueza foi obtida do que era público, tomado aos trabalhadores e por deduções de impostos.

4 – O ESTADO POLICIAL

 As desigualdades não são apenas económicas. O Estado oligárquico necessita de um sistema repressivo e uma justiça desigual conforme o poder financeiro dos cidadãos. "A burguesia põe o mercado a funcionar pela via policial" (Marx).

 No Estado policial ao serviço das oligarquias os cidadãos críticos são perseguidos por exercerem seus direitos constitucionais ao passo que elites criminosas operam com impunidade e são cortejados pela direita e propagandistas da comunicação social.

 Nos EUA o Department of Homeland Security tem mais de 400 mil funcionários, porém fraudes bancárias, evasão fiscal, lavagem de dinheiro, pagam pequenas multas e executivos são afastados com chorudas indemnizações.

 Em resultado do agravamento das contradições do sistema são instituídos meios de criminalizar os cidadãos, torna-los inseguros, obedientes, perseguindo os mais pobres como anti-sociais e responsáveis pela sua condição Foi revelado que o FBI deu instruções às escolas para informarem sobre estudantes que critiquem as políticas do governo como sendo potenciais terroristas, informando que tais "extremistas" estão na mesma categoria que militantes do ISIS. [4]

 Na UE o mesmo caminho está a ser seguido. A legislação antiterrorista – terrorismo de organizações criadas e mantidas pelos poderes oligárquicos – progressivamente suprime liberdades, direitos e garantias dos cidadãos [NR] , boa parte dos quais apresentados como "privilégios".

 Um relatório do "National Law Center on Homelessness & Poverty" de 2014 mostrava que um número crescente de cidades dos EUA tinham disposições legais que criminalizavam situações de pobreza, a mendicidade, os sem-abrigo, os que dormiam em viaturas, etc.

 Afirma David Lindorff: "já não podemos falar como se os EUA fossem um país a caminhar para se tornar um estado policial. Já estamos a viver num estado policial" [5] Mulheres são condenadas a prisão perpétua por crimes menores de droga; enquanto gigantes da banca são imunes à justiça por maciça lavagem de dinheiro da droga. Relatórios apresentados ao Senado confirmam a prática de tortura de responsabilidade da CIA.

 Nos primeiros seis meses de 2015 o número de pessoas mortas pela polícia chegou a 500 como uma epidemia de continuada violência que atinge toda a sociedade. [6] Menores são condenados a prisão perpétua, pessoas reconhecidamente inocentes ou com desobediências menores barbaramente agredidas ou mesmo mortas,

 A Human Rights Watch estima que nos EUA existirão aproximadamente 20 mil detidos em prisões de máxima segurança, cujas condições de detenção são a reclusão solitária ou muito semelhante; 80 mil homens, mulheres, mesmo crianças estão ou já estiveram detidos em solitária. Muitos desconhecidos passaram anos, em alguns casos décadas em solitária. Existem nos EUA 6,6 milhões de cidadãos presos ou em liberdade condicional.

5 - A DEMOCRACIA REFÉM DA OLIGARQUIA

 Ao serviço das transnacionais foi instituído e está a ser aprofundado um poder totalitário, antidemocrático, sob o álibi da globalização e suas mirificas vantagens que a realidade desmente totalmente. O domínio das transnacionais é exercido por instituições internacionais que se sobrepõem ao poder democrático (FMI, BCE, CE, CE, etc.). Os ditos tratados de comércio livre como o TTIP ou o TTP pretendem ser a derradeira etapa desta imposição.

 Refém dos oligarcas a democracia deixou de ser o governo do povo e pelo povo. Não passa de uma ficção baseada na hipocrisia de alguns e na ignorância e medo da generalidade. Para a oligarquia direitos humanos, tal como definidos na Carta das Nações Unidas têm apenas um significado instrumental servindo para atacarem quem lhes pretenda impor condições. Os direitos do grande capital estão colocados acima dos direitos humanos.

 A "competitividade fiscal" é um crime, tornado legal a favor dos oligarcas, enquanto os impostos são aumentados sobre as MPME e trabalhadores. Eliminar este crime, inconcebível num espaço pretensamente comum como a UE, foi contestado por J.C. Junker, por ir contra "as leis da concorrência"!

 Entregue ao lucro monopolista e a uma desbragada especulação financeira, em que consiste o Estado oligárquico? Paul Craig Roberts, responde referindo-se ao seu país: "a conclusão é inevitável: uma vergonhosa tirania de exploração". [7]

6 – DO ESTADO OLIGÁRQUICO AO ESTADO DEMOCRÁTICO

 As ilusões da social-democracia estão mortas, sepultadas sob os ditames do neoliberalismo. O Estado oligárquico destrói os direitos humanos: políticos, económicos, sociais e culturais.

 A História contemporânea mostra-nos, que uma democracia plena é impossível enquanto subsistirem ambições imperialistas e enquanto permanecer o poder económico, financeiro e social da oligarquia. Os recentes acontecimentos na Venezuela e no Brasil comprovam-no, isto sem recuar ao Chile de Allende e – malogradamente – a outros casos.

 Nestes processos verificamos "a impotência das bases populares que derrubaram governos, desgastaram regimes, mas que inclusive nos processos mais radicalizados não puderam impor revoluções, transformações que fossem mais além da reprodução das estruturas de dominação existentes" "sem se afastarem de práticas reformistas praguejadas de contradições". [8]

 A Revolução do 25 de Abril pretendia a construção de um Estado democrático, na medida em que foi desenvolvido o poder popular e uma estratégia anti-monopolista. A ingerência imperialista fez avançar a contra-revolução que, após o 25 de novembro, permitiu a reconstituição do Estado oligárquico através das privatizações, da adesão à UE (então CEE) e ao euro, culminando no anterior governo PSD-CDS.

 Não há política progressista sem desmantelamento do Estado oligárquico. Bancos e grandes grupos económicos, sectores estratégicos da economia, devem ser colocados sob controlo público e democrático para serem utilizados como instrumentos de planeamento econômico orientado para as necessidades sociais. A própria comunicação social deve ser incluída neste controlo público e democrático, não permitindo que se transforme numa alfurja de calúnias, censura ao que não convém à oligarquia e esteio da conspiração.

 É sem dúvida uma tarefa complexa, dura e incerta, mas "os que têm coração e alma e amam a justiça deviam lutar e combater pelo povo. E ainda que não sejam escutados têm na amizade dele uma consolação suprema". Eça de Queiroz, Prosas Esquecidas.

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[1] O novo Admirável mundo novo [2] www.oxfam.org/... [3] 3 Shocking Ways Inequality Keeps Getting Worse in America , Paul Buchheit [4] FBI Has New Plan to Spy on High School Students , Peter van Buren [5] www.informationclearinghouse.info/article40279.htm , David Lindorff [6] Justice is Dead in America ,   US Police Killed Over 500 People This Year , por Tom Hall e Andre Damon [7] Gangster State America, Where Is America's Democracy? , Paul Craig Roberts, [8] América Latina na hora do lumpen-capitalismo , Jorge Beinstein. Importante texto para a compreensão dos atuais contextospolíticos e sociológicos. [NR] Um caso exemplar da paranoia policialesca na UE é o do diplomata português espancado pela polícia belga por ter tirado uma foto do edifício da Comissão Europeia .

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[Artigo tirado do sitio web portugués ‘Resistir.info’, do 6 de maio de 2016]