Cresce a resistência de classe à "globalização"

Prabhat Patnaik - 19 Xun 2017

O capitalismo neoliberal atingiu agora o ponto onde sua tendência espontânea para manter baixa a resistência de classe, através da promoção da fragmentação, já não é mais suficiente para isso. E a resistência de classe, quando começa, tem meios para propagar-se de modo rápido e amplo

O termo "globalização", embora muito utilizado, é extremamente enganoso, tal como o seu presumido "par", o "nacionalismo". Isto acontece porque ambos os termos são utilizados de modo abrangente sem qualquer referência ao seu conteúdo de classe, como se só pudesse haver uma espécie de "globalização" e só uma espécie de "nacionalismo". Utilizar conceitos destacados do seu conteúdo de classe é um dos truques favoritos da ideologia burguesa: o que equivale a conferir universalidade a conceitos que no essencial pertencem só ao discurso burguês, como se este fosse o único discurso possível do universo e todas as opções estivessem confinadas apenas a trajectórias alternativas dentro deste universo.

 Esta utilização não-classista de palavras que servem para tudo torna possível estabelecer antinomias. Assim, seja o que for pode parecer melhor do que outra coisa, como se fosse algo razoável. Isso equivale a endossar o que disse o lado conservador de Hegel: "O real é a razão". Portanto é estabelecida uma antinomia entre "globalização" e "nacionalismo" onde a primeira parece progressista, aberta, democrática e transportadora da "modernidade", ao passo que a última parece reaccionária, fechada anti-democrática ao ponto de ser fascista, e anti-"moderna". Qualquer oposição àquilo que existe (isto é, a "globalização") é então alcunhada, dentro desta disjuntiva binária, como um movimento reaccionário, um afastamento da marcha rumo à "modernidade", em direcção a um tradicionalismo opressivo e anti-democrático. A resistência contra a opressão dentro do actual regime de "globalização" é dessa forma desacreditada como uma regressão reaccionária a um passado horrendo.

 Uma vez que tal ideia também permeia certas secções da esquerda, estas também encaram a resistência a uma "globalização" opressiva (onde a opressão decorre devido ao conteúdo de classe desta globalização), como um recuo para um nacionalismo reaccionário – e desenvolvem uma atitude distante em relação à mesma. Isto ironicamente serve para actuar como uma profecia auto-realizável: a própria frieza de segmentos da esquerda em relação à resistência contra a "globalização" dá uma oportunidade às forças reaccionárias da direita e mesmo fascistas de se posicionarem como amigas de tal resistência – e isto realmente parece dar a esta resistência o carácter muito reaccionário que estes segmentos da esquerda esperavam desde o começo.

RESISTÊNCIA CADA VEZ MAIS LIDERADA PELA ESQUERDA

 A questão real portanto é encarar termos como "globalização" levando em conta o seu conteúdo de classe e também o conteúdo de classe da resistência a ela. E aqui emerge o facto inequívoco de que a actual "globalização" – a qual representa a hegemonia do capital financeiro internacional e tem provocado miséria aguda entre os trabalhadores por todo o mundo, ou seja, os trabalhadores nos países capitalistas avançados e os trabalhadores, camponeses, pequenos produtores e trabalhadores agrícola nos países subdesenvolvidos – está a ser por eles desafiada por toda a parte. Uma resistência, tal como não se via desde há décadas, está a crescer, a qual, embora confinada dentro de países, tem no entanto uma ampla difusão entre os demais. E mais ainda, esta resistência está agora a ser cada vez mais conduzida pela esquerda, pois ela abstém-se por toda a parte da sua anterior ambivalência quanto à globalização liderada pelas finanças.

 As eleições presidenciais dos EUA trouxeram à tona um auto-proclamado socialista, Bernie Sanders, o qual tomou claramente uma posição reconhecendo a miséria aguda acumulada sobre os trabalhadores americanos pela globalização conduzida pelas finanças, e que se desempenhou extremamente bem na corrida eleitoral e poderia mesmo ter derrotado Donald Trump, até ter sido expulso da corrida pelo establishment do Partido Democrata (faltando-lhe infelizmente a coragem para combatê-lo). As eleições presidenciais francesas trouxeram à tona Jean-Luc Melenchon, candidato da esquerda (apoiado pelo PCF) que obteve quase 20 por cento dos votos (19,64), apenas um pouco menos do que Emmanuel Macron que obteve a vitória final na primeira volta (23,75). E agora as eleições britânica trouxeram à tona um Partido Trabalhista liderado por um socialista, Jeremy Corbyn, que fora sistematicamente ridicularizado não só pelos conservadores como também pelos blairistas dentro do Partido que haviam capturado durante décadas e que eram ardentes advogados das políticas neoliberais promovidas pela globalizada conduzida pelas finanças.

 Os resultados da eleição britânica, além de serem uma rejeição de Theresa May cujo governo conservador foi reduzido a uma minoria, e aos blairistas, também cortaram dimensão do UKIP, o partido de direita anti-imigração que foi um destacado apoiante do Brexit. Ele obteve apenas 1,8 por cento dos votos e nem uma única cadeira, sua votação caiu muito abaixo do 10,8 por cento em comparação com a eleição geral anterior. Uma das afirmações da oposição liberal do establishment ao Brexit foi que era uma campanha da direita a partir da qual o UKIP venceria. Mas claramente a classe trabalhadora britânica, a qual esmagadoramente apoiou o Brexit, assim o fez por causa da opressão económica da UE e não por qualquer simpatia pelo UKIP. Na verdade, ela tinha escassa consideração pelo UKIP e uma vez que o Partido Trabalhista se livrou da influência blairista na sua liderança, afluiu às bandeiras do Labour. Corbyn pode não ter vencido realmente a eleição, mas ele reconstruiu a ponte entre os sindicatos e o Partido Trabalhista a qual fortalecerá a intervenção da classe trabalhadora e a resistência contra a globalização conduzida pela finança.

 Tudo isto são desenvolvimentos na arena eleitoral dos países capitalistas avançados, reflectindo a oposição da classe trabalhadora à globalização. Mas mesmo na Índia, uma forte resistência do campesinato contra os apertos a que os levou o regime neoliberal sob a globalização liderada pela finança vieram agora à superfície após um período de tempo muito longo, embora seja demasiado cedo para encontrar reflexo disso na arena eleitoral. O movimento camponês emergiu em pelo menos três estados, Maharashtra, Madhya Pradesh e Rajasthan (todos dominados pelo partido BJP o qual é o instrumento actual para a imposição dos ditames da oligarquia corporativo-financeira ligada à finança internacional), cujas reivindicações incluem preços remunerativos e um cancelamento de dívida (debt-waiver). O movimento chega após um interregno de aproximadamente quatro décadas. Durante quatro décadas houve suicídios de camponeses mas não lutas camponesas em grande escala contra as políticas que levaram ao seu empobrecimento. Não há dúvida que têm sido lutas sobre questões específicas em bolsões específicos mas não movimentos generalizados e sincronizados.

ANTECEDENTES DO MOVIMENTO CAMPONÊS

 Um movimento geral por todos os estados do país a exigir preços remunerativos havia ocorrido só no fim da década de 1970. Vale a pena recordar aqui os antecedentes daquele movimento. O fim dos anos 60 e princípios dos anos 70 foi um período de inflação maciça na Índia, com a taxa em 1973-74 chegando aos 30 por cento na sequência do primeiro choque petrolífero (embora o choque petrolífero tenha apenas se somado à fúria da inflação que tivera início). O drástico esmagamento da classe trabalhadora imposto por esta inflação foi um factor importante por trás da onda de lutas grevistas dos trabalhadores daquele tempo, dos quais a Greve Ferroviária de 1974 foi a mais importante. A insatisfação devida à inflação foi também responsável pelo facto de o [partido do] Congresso de Indira Gandhi perder as assembleias eleitorais em Gujarat.

 Portanto, o governo Indira Gandhi estivera sob pressão para fazer algo acerca da inflação. Ele queria controlar esta inflação invertendo os termos de troca entre o sector agrícola e o não agrícola, contra os primeiros, o que significa efectivamente controlar a inflação pelo esmagamento dos camponeses e, através deles, dos trabalhadores agrícolas (uma vez que camponeses "transferem" suas desgraças para os trabalhadores). O período de Emergência foi digno de nota pela mudança dos termos de troca (terms-of-trade) a que deu lugar, tanto assim que muitos investigadores encararam a economia política da Emergência como consistindo na imposição de uma "política de estabilização" anti-camponesa para combater a inflação. Foi esta postura anti-campesinato que provocou manifestações maciças de camponeses (inclusive no Boat Club em Delhi [1] ) e um surto de lutas camponesas por todo o país no fim dos anos 70 e princípio dos 80.

 Mas aquilo que o governo de Indira Gandhi fez num contexto específico dentro do regime dirigista agora tornou-se a norma dentro do regime neoliberal. As políticas neoliberais impostas pela globalização conduzida pela finança implicaram efectivamente a adopção permanente de um conjunto de políticas anti-camponesas, não apenas para manter baixa a inflação (a qual não está de modo algum tão alta como no princípio dos anos 70) mas para efectuar um processo de acumulação primitiva de capital para o enriquecimento dos monopolistas internos e estrangeiros.

 Um tal processo de acumulação primitiva de capital a expensas dos pequenos produtores tradicionais também tem o efeito de esmagar a classe trabalhadora, incluindo seu segmento organizado. Os camponeses deslocados e pequenos produtores que afluem às cidades em busca de empregos, não os encontram. Quando muito, os empregos existentes são partilhados entre mais trabalhadores através de processos de precarização (casualisation), outsourcing, informalização e outros semelhantes, todos os quais contribuem para um inchaço do exército de reserva do trabalho. E tal inchaço mantém baixa a força negocial de todos os trabalhadores, incluindo mesmo a dos trabalhadores organizados. O que acontece aos trabalhadores numa economia como a nossa dentro de um regime neoliberal não é portanto independente do que acontece aos camponeses. Um processo de acumulação primitiva a expensas dos últimos também serve para esmagar os primeiros.

 Entretanto, há um segundo meio ainda mais importante pelo qual a acumulação primitiva afecta os trabalhadores. Uma vez que o exército de reserva do trabalho exprime-se não em termos de uma simples dicotomia entre alguns que estão empregados e outros que estão no desemprego, mas antes através de fenómenos como "desemprego disfarçado" e precarização ou trabalhadores empregados intermitentemente, um inchaço das suas fileiras implica um aumento na fragmentação de trabalhadores e portanto um novo enfraquecimento da sua capacidade para resistir. E qualquer enfraquecimento na capacidade da classe trabalhadora para resistir propaga-se também a outros segmentos da população, levando a um rebaixamento geral da resistência de classe.

 O que estamos a testemunhar por todo o mundo hoje em dia é uma reversão desta tendência. O capitalismo neoliberal atingiu agora o ponto onde sua tendência espontânea para manter baixa a resistência de classe, através da promoção da fragmentação, já não é mais suficiente para isso. E a resistência de classe, quando começa, tem meios para propagar-se de modo rápido e amplo.

 

[Artigo tirado do sitio web portugués Resistir.info, do 19 de xuño de 2017]