Brexit

João Ferreira - 18 Mar 2016

Nos últimos meses, muito se tem dito e escrito sobre a possível saída do Reino Unido da União Europeia. O «Brexit» – expressão que cunhou essa possibilidade de saída – irá a referendo a 23 de Junho. Até lá, o assunto irá seguramente percorrer o debate político, não apenas no Reino Unido mas inevitavelmente também na Europa continental.

 Não há como esconder a ligação umbilical que existe entre um possível «Brexit» e a profunda crise do processo de integração capitalista europeu. Quem procurar situar o caso «Brexit» exclusivamente no campo da política interna britânica, atribuindo à sua óbvia dimensão europeia a categoria de mero efeito colateral, das duas uma: ou está rotundamente enganado ou empenhado em enganar outros.

 O «Brexit» é expressão e resultado, em parte, do agravamento das contradições entre potências na UE, que acompanha o agravamento da crise económica e social na Europa. Mas a gestão feita pela UE do caso «Brexit» é ela própria factor não despiciendo de agravamento da crise na e da UE. As conclusões do Conselho Europeu de Fevereiro último são, a este respeito, elucidativas.

 Tendo em vista a permanência do Reino Unido na UE, o conclave aprovou uma decisão «relativa a um novo quadro para o Reino Unido na União Europeia». Independentemente de outras considerações, estamos perante a cristalina confirmação de que quando se trata de ir ao encontro dos interesses das grandes potências, ou quando se trata de dirimir contradições entre elas, a legislação e os tratados da UE adquirem um valor relativo. Toda a flexibilidade passa a ser possível. Todavia, essa flexibilidade transforma-se rapidamente em total rigidez e completa imobilidade quando se trata de pressionar e chantagear países como Portugal para lhes impor o férreo rigor da letra e do espírito inamovíveis dos tratados e demais legislação da UE. Atente-se no recente e indigno exemplo da discussão do Orçamento do Estado para 2016.

 O referido «novo quadro» aceita todas as exigências feitas pelo Reino Unido. Por exemplo, o sistema financeiro britânico é excluído da União Bancária e dos seus instrumentos e mecanismos, nomeadamente nos domínios da supervisão, regulação e resolução bancárias, muito embora lhe sejam asseguradas «condições equitativas de concorrência» no espaço europeu. Mas, mais significativamente, as conclusões do Conselho Europeu denotam uma perigosa deriva xenófoba, racista e reaccionária da UE. Consagra-se a implosão do tão propalado princípio da livre circulação de pessoas (realmente nunca efectivado). Por razões consideradas de «ordem pública», institui-se na letra da lei na UE o dumping social e a discriminação dos trabalhadores em função da sua origem nacional e condição social. Há parágrafos das conclusões do Conselho Europeu que falam por si. Um exemplo: «O direito de uma pessoa economicamente inactiva residir no Estado-membro de acolhimento depende (...) do facto dessa pessoa dispor de recursos suficientes para si própria e para os membros da sua família, a fim de não se tornar uma sobrecarga para o regime de segurança social do Estado-membro de acolhimento, e de dispor de uma cobertura extensa de seguro de doença».

 Eis, em todo o seu esplendor, a Europa dos belos princípios, da democracia, das liberdades, da solidariedade e do progresso.

 Importa assinalar que todas as disposições agora aprovadas pelo Conselho Europeu deverão ser integradas na legislação da UE. Esse processo será desencadeado no dia seguinte ao referendo, caso o seu resultado dite a permanência do Reino Unido. São disposições que produzirão efeitos para todos os estados-membros, não apenas para o Reino Unido.

 Mas independentemente do desfecho do caso «Brexit», as decisões agora tomadas arrasam definitivamente uma certa visão que tende a conferir às regras e constrangimentos que norteiam a integração capitalista um carácter de sagrada inviolabilidade.

 Depois do «Brexit», seja o seu desfecho o «in» ou o «out», não será aceitável, em nenhuma circunstância, que algum outro Estado-membro da UE seja confrontado com a impossibilidade de ajustar o seu estatuto às suas especificidades nacionais e à vontade do seu povo. Se necessário, requerendo derrogações, excepções ou salvaguardas específicas, perante as políticas comuns, o mercado interno, a legislação e pactos diversos da UE, incluindo os tratados – cuja possibilidade de reversibilidade agora se comprova na prática. Para um país como Portugal, fazer valer essa exigência constitui um indeclinável dever de qualquer governo portador de um mínimo assomo de brio patriótico.

 

[Artigo tiardo do sitio web portugués ‘Avante’, núm. 2.207, do 17 de marzo de 2016]