Brasil: Nove teses sobre a contra-revolução neoliberal

Juarez Guimarães - 13 Mai 2016

O que está se organizando mais além de um novo governo é uma refundação do Estado brasileiro a partir de fundamentos neoliberais-fascistas, um novo regime de organização do poder e de direitos que se propõe a substituir o regime nascido da Constituição de 1988

1) O que está em curso no Brasil não é apenas um golpe em um governo legitimamente eleito mas uma contra-revolução neoliberal, típica de uma terceira fase regressiva do neoliberalismo no plano internacional. Se os anos oitenta marcaram a dominância de uma nova corrente regressiva do liberalismo, crítica e corrosiva ao liberalismo social que havia predominado no pós-guerra, se os anos noventa expressaram já após a dissolução da URSS uma desorganização avançada da tradição e do programa social-democrata através das chamadas terceiras-vias, os anos iniciais deste século evidenciam exatamente o surgimento de uma radicalização regressiva do programa neoliberal que se organiza em frente com forças e lideranças proto-fascistas. É por um radical ataque aos princípios republicanos e democráticos fundamentais que o neoliberalismo, em sua terceira fase, pretende resolver a sua incapacidade de formar maiorias nas democracias e legitimar uma nova onda de ataques aos direitos humanos e sociais.

2) Esta caracterização de uma contra-revolução neoliberal internacional, em sua terceira fase regressiva, é fundamental para entender o seu programa, a sua dinâmica, a sua força. A esquerda latino-americana, vinculando luta social e luta democrática, havia conseguido nos últimos quinze anos derrotar as forças neoliberais, através de programas de democratização do poder político, de inclusão e novos direitos sociais, de afirmação das soberanias nacionais. Em diferentes processos e em diferentes graus, ela foi colocada na defensiva e agora está sendo derrotada pelas políticas organizadas pelo neoliberalismo nesta sua terceira fase regressiva. Como esta ofensiva neoliberal utiliza-se instrumentalmente de mecanismos internos às próprias instituições democráticas, quanto mais institucionalizadas estas forças de esquerda e progressistas, mais dificuldades elas têm de enfrentar esta nova onda conservadora neoliberal-fascista.

3) É a partir deste enquadramento geral que devemos entender o programa da contra revolução neoliberal-fascista que está em curso no Brasil. Ela combina a derrubada inconstitucional do segundo governo Dilma, a criminalização ampla da esquerda e dos movimentos sociais e a imposição de um programa de reformas constitucionais que atinge direitos democráticos fundamentais gravados na república democrática fundada em 1988 e até mesmo direitos trabalhistas consagrados na Constituição de 1946. A violência não apenas anti-socialista mas anti-republicana e anti-democrática contida neste programa contra os direitos humanos, os trabalhadores, os pobres, os sem-terra e os sem-teto, os negros, as mulheres, os índios , os gays exige qualificá-lo como a atualização de um programa de barbárie.

4) A diferença entre uma posição ultra-conservadora e uma posição fascista é que a primeira vale-se de juízos e preconceitos arraigados contra a esquerda e suas bandeiras históricas mas reconhece a existência de direitos civis e pluralismo e a segunda não aceita sequer discutir e disputar com a esquerda mas deseja construir a sua execração pública e exterminá-la da cena política. Na conjuntura brasileira atual, tal execração se faz pela generalização seletiva da acusação de corrupção ( o PT seria neopatrimonialista, na versão de FHC, ou “uma quadrilha criminosa que assaltou o poder”, como na versão mais vulgar de Aécio Neves ou do Procurador- Geral Janot), pela via do fundamentalismo religioso ( a esquerda seria satanista) ou até pelo discursoexplicitamente fascista como na fala de Bolsonaro ou do MBL). O extermínio político da esquerda na “democracia” se daria através da criminalização ampla dos seus partidos, das suas lideranças, dos movimentos sociais pela via jurídica repressiva.

5) A dinâmica da contra-revolução neoliberal-fascista combina quatro dimensões decisivas. A primeira é o processo de radicalização neoliberal do programa do PSDB que o empurrou para a aliança com a direita proto-fascista e se combinou com uma estratégia golpista de não reconhecimento do resultado das eleições presidenciais de 2014. Este deslocamento é fundamental para entender a dinâmica da contra-revolução não apenas em seu sentido programático mas, devido à grande inserção financeira e empresarial, midiática e institucional deste partido, por sua capacidade de organizar uma coalizão golpista majoritária no Congresso Nacional, articulando-se inclusive nas corporações jurídicas e na Polícia Federal. Esta radicalização neoliberal do programa do PSDB levou a uma forte impopularidade de seus governos estaduais (ver São Paulo e principalmente Paraná), deslocou a base histórica de sua intelectualidade que ainda mantinha alguns traços progressistas, renovou à direita sua base de representação parlamentar, acentuou a sua retórica anti-pluralista.

6) A segunda dimensão decisiva é o novo papel e o novo discurso dos oligopólios de mídia que dominam a comunicação pública no Brasil muito orgânicos à inteligência política do PSDB. Eles têm sido fundamentais para a legitimação do processo de judicialização da democracia, para a mobilização de massas e para a disseminação social de um discurso de ódio contra a esquerda brasileira. O chamado discurso do ódio, que se caracteriza pela execração e linchamento moral do oponente, autorizando e incentivando o seu extermínio, é bastante típico dos grandes momentos históricos regressivos da democracia, como no fascismo, nazismo, franquismo e salazarismo. É um passo além da parcialidade e anti-pluralismo vigentes nos oligopólios de mídia nas últimas décadas brasileiras. Trata-se da legitimação de um regime anti-republicano e anti-democrático, de tipo neoliberal-fascista.

7) A terceira dimensão decisiva é o processo de judicialização, em estágio avançado, da democracia brasileira que se organiza em torno a um concepção policial do combate à corrupção sistêmica existente na democracia brasileira. Esta concepção policial do combate à corrupção propõe abolir o devido processo legal, a presunção de inocência e os direitos humanos em troca de uma sistemática violação da constituição e das leis penais, de uma condenação pública e inclusive aprisionamento antes do julgamento e de um máximo estreitamento dos direitos de defesa do acusado. Esta concepção policial, que organiza a Operação Lava-jato e a ação da Procuradoria Geral da República, tem sido legitimada na prática pelo STF, tornando-se dominante no Judiciário brasileiro. Ela é partidarizada, arbitrária e seletiva, formando jurisprudências e tribunais de exceção, típicos de períodos regressivos da democracia e da república.

8) A quarta dimensão decisiva é a formação de uma base de massas neoliberal-fascista, que publiciza, organiza e protagoniza ataques públicos à esquerda e às suas lideranças. Fazem parte deste fenômeno manifestações de centenas de milhares de pessoas, unificadas pelo discurso do ódio, grupos ativistas fortemente ancorados nas redes sociais, grupos evangélicos fundamentalistas, além de ataques terroristas a sedes e símbolos da esquerda e dos movimentos sociais que se tornaram frequentes no último período.

9) O que está se organizando mais além de um novo governo é uma refundação do Estado brasileiro a partir de fundamentos neoliberais-fascistas, um novo regime de organização do poder e de direitos que se propõe a substituir o regime nascido da Constituição de 1988. Este novo pacto de poder é orgânico as classes dominantes internacionais, solda em uma unidade classista os setores financeiros, industriais, comerciais e do agro-negócio da grande burguesia brasileira, tem o apoio orgânico dos grandes oligopólios de mídia, pretende controle o executivo, formar uma sólida maioria conservadora no Congresso nacional, além de dominar as posições chaves do Judiciário e da Procuraria Geral do Estado brasileiro. A sua base de massas é fundamentalmente classista, articulando os estratos sociais burgueses e mais privilegiados da sociedade brasileira, inclusive nas classes médias,mas organiza um apoio popular principalmente através das igrejas evangélicas fundamentalistas.

 

[Artigo tirado do sitio web brasileiro ‘Agência Carta Maior’, do 12 de maio de 2016]