Arxentina: Eles ou nós

Claudio Katz - 22 Mai 2018

Em qualquer cenário o pacto assinado com o diabo do FMI empurra a economia argentina para o precipício. Já se antevê o círculo vicioso de ajustamentos que contraem a actividade produtiva, deterioram a receita fiscal, potenciam o défice fiscal e desembocam em novos ajustamentos. O espelho da Grécia está à vista, com eventuais elementos de estagflação

 Era previsível que o modelo económico de Macri afundasse a Argentina numa grave crise. Os recentes acontecimentos, entretanto, mostram que essa crise está a chegar mais cedo do que o previsto. O governo Macri pretende regressar ao FMI, ou seja, pretende radicalizar brutalmente a destruição das conquistas populares dos últimos anos, privilegiar ainda mais o grande capital e os terratentes, submeter o povo à pobreza e o país à dependência e ao endividamento externo. Só uma grande mobilização popular o poderá deter. “Ou eles, ou nós.”

 Soube-se sempre que Macri governava para os ricos e que o seu modelo económico desembocaria numa grande crise. A primeira afirmação ficou corroborada pela redistribuição regressiva dos rendimentos perpetrada nos últimos dois anos. A segunda começou a verificar-se com a corrida cambial da última semana.

 Está a tremer um modelo neoliberal assente em enormes desequilíbrios externos e fiscais apoiados no endividamento externo. Todos imaginavam que o financiamento ia durar até 2019, mas o final do filme antecipou-se de forma imprevista.

 Wall Street anunciou em Março que não aceitaria mais títulos. O governo maquilhou essa negativa com um enganoso anúncio de maior financiamento local, mas os capitais migrantes captaram de imediato o significado da seca. Emitiram ordem de retirada e começou a incontível subida do dólar.

 O financiamento foi cortado devido à desconfiança dos credores. Intuem a futura insolvência do devedor argentino. Por isso as agências de “rating” baixaram o polegar, o risco país aumenta e a imprensa especializada descreve cenários dramáticos.

UMA CONSEQUÊNCIA DO MODELO

 A fragilidade do sector externo é o ponto mais crítico do esquema actual. Os bancos retiraram os créditos, ao notar a ausência futura dos dólares requeridos para sustentar o endividamento. Observam a magnitude do défice externo, que no ano passado superou os 30.000 milhões de dólares (5% do PIB).

 O problema central localiza-se na esfera comercial. O desequilíbrio de 8000 milhões em 2017 marcou um record histórico. Foi gerado pelas fantasias livre-cambistas do oficialismo, que abriu o mercado a todo o tipo de importações.

 Enquanto em todo o mundo impera uma dura negociação de tarifas alfandegárias, a Argentina transformou-se num depósito de qualquer excedente. Para cúmulo, as exportações sofreram uma travagem, em resultado da valorização cambial que a entrada de capitais especulativos gera.

 O desequilíbrio no plano financeiro é igualmente dramático. A saída de divisas acompanha Macri desde o próprio dia em que imaginou a incumprida chuva de dólares. O retrocesso de activos é tão sustentado como a fuga de capital. Essa drenagem é congruente com a eliminação de todas as regulações à actividade financeira. Os controlos no circuito bancário foram desarmados, com a mesma velocidade com que se anulou a obrigação de liquidar os dólares da exportação.

 Na mesma desprotecção assenta a bicicleta financeira dos fundos que lucram com a altíssima rentabilidade dos títulos argentinos. As delirantes taxas de juro que asseguram esse negócio destroem qualquer possibilidade de investimento produtivo. O mau gasto das divisas incluiu também o esbanjamento no turismo. Essa hemorragia foi inclusivamente celebrada por vários ministros como um maravilhoso exemplo do “regresso ao mundo”.

 O buraco fiscal é também impressionante. Aproxima-se do típico percentual do PIB (6-7%), que tradicionalmente precipitou os grandes terremotos da economia. O governo destaca a envergadura desse défice e apresenta-o como um mal alheio que tem de administrar. Com gestos de compaixão, afirma que teve de o manter para financiar o gradualismo e evitar maiores sacrifícios da população. Mas oculta que todos os desequilíbrios derivam do modelo em curso e não do ritmo da sua implementação. Se tivesse carregado no acelerador da mesma engrenagem neoliberal, o desastre seria infinitamente superior.

 Quando os funcionários reclamam contra o costume de “gastar mais do que se recebe”, atribuem todas as desgraças ao primeiro componente. Esquecem que a receita fiscal ficou seriamente afectada pela redução dos impostos aos exportadores. Tão pouco assinalam que o branqueamento não fez reverter a evasão. A Argentina figura no quinto posto mundial desse flagelo e a moda oficial de proteger patrimónios em empresas “off shore” ilustra quem são os promotores da fraude fiscal.

 O oficialismo também se esquece de referir como o pagamento de juros deteriora as contas públicas. Só no primeiro trimestre do ano esses encargos aumentaram 107% em comparação com 2017.

 O modelo neoliberal gera descalabros que o governo não pode corrigir. O desastre em curso não foi desencadeando pela nova proporção do imposto aos lucros sobre os títulos, mas pela aterrorizada reacção do Banco Central. Em poucos dias incinerou vários manuais de política monetária. Recorreu a todos os instrumentos conhecidos para deter uma corrida e não acertou com nenhum. Apelou inclusivamente, sem resultados, ao judicializado mercado do dólar futuro.

 A crise internacional não foi até agora determinante do tremor argentino. Persiste a liquidez financeira global e não se observa uma repetição do “efeito de dominó” sobre as economias latino-americanas. Certamente que o incremento das taxas de juro dos Estados Unidos altera todos os investimentos no mundo. Mas esse reajustamento tem de momento efeitos limitados.

 Se a Argentina padece desse resfriamento como se de uma grave pneumonia se tratasse é devido ao pânico que o seu tresloucado endividamento suscita. O país encabeçou nos últimos dois anos o tabuleiro mundial de colocação de títulos e é penalizado por esse descontrolo. Mas o grosso da população não é responsável por essa má gestão. O culpado é Macri e os CEO’s do seu gabinete, que engrossaram os caudais da classe capitalista. Para ocultar esse delito os comunicadores do oficialismo atribuem a todos os “argentinos” um desfalque consumado por essa minoria de privilegiados.

RETORNO AO MESMO FUNDO

 Os números de Maio retratam a gravidade da crise: desvalorização de 20%, taxas de juro de 40%, perda de 8.000 milhões de dólares das reservas. O temor de um dramático desenlace aumenta, com alguns sintomas de transferência dessa tensão aos bancos.

 O governo troça da população emitindo mensagens de tranquilidade. Pretende criar a ilusão de uma simples correcção da flutuação cambial, sem consequência alguma. Ainda repete que o nível de endividamento é “baixo em comparação com o PIB”, como se essas percentagens genéricas (e não a capacidade de pagamento efectiva do devedor) determinassem a atitude dos credores.

 Enquanto o discurso oficial minimiza a crise, os financeiros do exterior não estão com salamaleques nas suas convocatorias “a escapar da Argentina” (Forbes). A tranquilidade do governo é uma estratégia tosca para evitar o despertar colectivo face à grave situação.

 A decisão de regressar ao FMI confirma o dramatismo da conjuntura. É uma medida desesperada que surpreendeu os próprios bonzos do Fundo. Ilustra o pânico de um governo que procura blindagens a qualquer preço para travar a corrida. A decisão foi tão imprevista, que anunciaram o retorno sem programa, nem mudança o de ministro.

 Os funcionários peregrinam por Washington desconhecendo as condições dos empréstimos que mendigam. Num contexto de baixas taxas internacionais e de certa recuperação da crise de 2008, muito poucos países recorrem ao FMI. Os que escolhem essa saída não têm outro refugio.

 É totalmente ridículo imaginar a existência de “outro FMI”. Essa instituição é gerida pelos mesmos peritos em demolir conquistas populares. Os países amarrados à sua tirania atravessam o pior dos mundos. É o caso da Grécia, que não pôde desembaraçar-se da auditoria do Fundo.

 Os helenos já padeceram quatro resgates dos seus bancos e três agudas recessões que fizeram retroceder 25% o rendimento nacional. A taxa de desemprego anda à volta dessa mesma percentagem, a dívida pública trepou para 180% do PIB e as pensões sofreram 14 cortes.

 A Argentina depara-se com as mesmas perspectivas. O FMI será duríssimo com o país. Das três variantes creditícias que tem disponíveis apenas ofereceu a versão mais intragável. Descartou a linha flexível (que Colômbia e México receberam) e a modalidade de precaução (utilizada por Macedónia e Marrocos). À Argentina apenas outorgarão o conhecido stand by por um montante ainda desconhecido.

 Os 30.000 milhões dólares que o governo pede superam todo o atribuído aos 13 países com planos de estabilização. A soma final chegará igualmente a conta-gotas, para evitar a sua rápida conversão em divisas em fuga para o exterior.

 Cada parcela utilizada desse crédito será rigorosamente auditada pelos enviados do Fundo. Essa auditação simboliza o brutal retorno aos anos 90. Os peritos do FMI voltarão a desembarcar trimestralmente para constatar a sua insatisfação e exigir maiores ajustamentos.

 Não há nenhum mistério nas reclamações imediatas dessa delegação. Em Dezembro passado elaboraram um detalhado ultimato de redução da despesa social, com maior flexibilidade laboral, reforma orçamental e despedimentos de funcionários públicos. A paulatina privatização do ANSES e o drástico corte dos orçamentos provinciais figuram no topo dessa agenda. Nas conversações de agora teriam acrescentado um novo perdão fiscal e sobretudo uma mega-desvalorização com recessão que permita efectivar a melhoria real do tipo de cambio.

 O ritmo e a aplicação desse pacote dependerá da intensidade da crise, que será testada na próxima terça-feira. Nesse dia o Banco Central defronta-se com um enorme vencimento de títulos (LEBACS). O volume total desses títulos equivale ao montante das reservas e ao total do dinheiro circulante. Se uma parte dos seus detentores resolve liquidá-los para se refugiar no dólar, a corrida pode alcançar outro pico de tensão.

 Se pelo contrario essa emergência é superada pela aterradora tentação de cobrar uns 40% de juro, as mesmas disjuntivas reaparecerão nos próximos meses. Como a cotação de todos os títulos argentinos se encontra em franca queda, é já evidente a grande desvalorização de activos que sofrerão as instituições oficiais (começando pelo ANSES), que entesouram esses títulos.

 Em qualquer cenário o pacto assinado com o diabo do FMI empurra a economia argentina para o precipício. Já se antevê o círculo vicioso de ajustamentos que contraem a actividade produtiva, deterioram a receita fiscal, potenciam o défice fiscal e desembocam em novos ajustamentos. O espelho da Grécia está à vista, com eventuais elementos de estagflação.

 A antecipação desse quadro desponta no novo nível de inflação anual de 30%. Se a taxa de juro não baixa rapidamente a recessão será inevitável. O governo cortou 30.000 milhões de pesos da obra pública, mas o FMI exigirá uma paralisação total. Nos próximos meses ninguém recordará a ficção estadística de menor pobreza que o governo difundiu. Basta observar a pavorosa expansão da mendicidade nas ruas para observar qual é o panorama social com que o país se depara.

REAGIR A TEMPO

 A gestão da bomba que o governo instalou dependerá da memoria e capacidade de reacção popular. As sondagens previas à negociação previram rejeição total do acordo com o FMI. Entre os 75% de consultados que rejeitam o convénio figura a grande maioria dos votantes do Cambiemos.

 O retorno ao FMI tem um significado emotivo enorme. Recria todo o sucedido em 2001. Por isso já se difundem tantas analogias com a blindagem De la Rúa. É imprescindível transformar essa bagagem e, rejeição activa, mobilização e propostas alternativas.

 O ponto de partida é ganhar a rua para gerar uma drástica reversão do curso actual. O clima de aceitação tácita das desregulações - que os grandes meios de comunicação propagam - desguarnece a economia. Para evitar o agravamento da crise há que reintroduzir todas as regulações eliminadas pelo oficialismo. São medidas básicas face à emergência.

 O controlo de câmbios é tão urgente como a proibição da livre entrada e saída dos capitais. Os depósitos dos pequenos aforradores devem ser protegidos, enquanto os grandes bancos e detentores de títulos suportam as perdas dos títulos desvalorizados.

 Há que erradicar todos os mitos sobre a adversidade de um “bloqueio cambial”. Os dólares não são um bem privado de livre disponibilidade. Sem controlos ao seu entesouramento e circulação não há forma de lidar com as fugas.

 En lugar de regressar ao FMI é necessário investigar a dívida contraída nos últimos anos e levar a tribunal os responsáveis por essa aventura. Caputo, Dujovne e Sturzzeneger deveriam estar a desfilar perante a justiça. Enquanto se verifica o estado real das contas públicas há que travar a hemorragia de divisas que o pagamento dos juros impõe. A crise actual começou com a submissão aos fundos abutres e não pode resolver-se sem ajustar contas com os depredadores do tesouro nacional. A gestão estatal do sistema financeiro é uma condição para emergir da delicada situação actual.

 Apenas seguindo este rumo o custo da crise recairá sobre os seus causadores e não sobre a maioria popular. Esse caminho requer uma frontal batalha de ideias com todos os economistas da direita que se apropriaram da televisão. Enaltecem o acordo com o FMI como uma nova justificação do mega-ajuste e apresentá-lo-ão como uma necessidade para “cumprir para com o mundo”. O mesmo atropelo que o oficialismo preparava para depois de 2019 será exposto como um acto de responsabilidade face aos credores.

 Mas a factibilidade dessa manobra reduziu-se drasticamente. O cenário político mudou e as eleições ficaram situadas muito longe da urgência actual. Macri tentará golpear com o pau e a cenoura. Prepara o veto à lei de restrição ao “tarifazo” e procurará copiar o modelo brasileiro de governo para-institucional.

 Mas está consciente da sua debilidade e recorrerá aos governadores e ao PJ para obter, face ao FMI, o mesmo aval que obtiveram para concertar o acordo com os fundos abutres. Os seus parceiros já lhe estenderam uma mão no Congresso ao negar-se a repudiar o retorno ao FMI, aprovando uma lei de liberalização do mercado de capitais em plena tormenta financeira.

 A intensidade da mobilização definirá quem ganha a partida. Em pleno confusão popular face ao abalo financeiro, essa reacção é por agora limitada. Está pendente a reaparição da grande força conseguida nas ruas durante Dezembro. Essa potencia da luta poderia recuperar-se nas batalhas contra o “tarifazo” e o tecto-limite às paritárias. Mas a rejeição do FMI ocupa agora o primeiro lugar de qualquer reclamação.

 É urgente travar a maior agressão contra as conquistas populares dos últimos anos. O tão anunciado mega-ajuste avizinha-se finalmente. Face à artilharia que o governo, o FMI e os capitalistas preparam há que erigir as defesas populares a toda a velocidade. Tal como já ocorreu no passado, de novo são eles ou nós.

 

[Artigo tirado do sitio web portugués ODiario.info, do 17 de maio de 2018]